VOLTAR A LER CAMILO CASTELO BRANCO

Embora Camilo Castelo Branco (CCB) seja um dos mais prolíferos escritores portugueses e talvez o primeiro que viveu exclusivamente da pena, da sua obra não muitas pessoas leram mais que o “Amor de Perdição”.

Um dia destes resolvi visitá-lo de novo e fui procurá-lo na minha estante. Tenho vários livros dele, alguns comprados por mim outros adquiridos pelos meus pais e pelos meus avós e que me vieram parar às mãos. Entre estes figura os “Mystérios de Fafe” numa edição que gosta de presumir que seja de 1868, a 1ª , por não dizer que é outra e por o respectivo preço ainda estar estabelecido em Reis.

Ao abrir a capa , a curiosidade é logo despertada, pois por baixo do título aparece a classificação que o autor lhe dá, ou seja “Romance Social” e a seguir uma citação

“O dilúvio que afogou a Europa no ano 2000, foi necessário e providencial : tanta era a corrupção d’aqueles povos !                                                                                                         ( Um filósofo asiático que há de escrever no ano de 3521 “

Depois na página seguinte aparece o “Aviso às Pessoas Incautas”                                            “ Esta novela contem adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais           ( CCB lá teria as suas razões para classificar os missionários entre os “tumores cancerosos” sociais ! )                                                                                                                       Almas, em flor de inocência e candura, não leiam isto que trescala* podridão de gafaria**, em que forçadamente a leitora, afeita ao ar puro das regiões vizinhas do céu, há de sentir nausear-se-lhe a alma”                                                                                                                       ( * trescalar = cheirar ;   **gafaria = hospital de leprosos )

Para dar mais uma ideia do estilo camiliano, aqui vai a transcrição duma pequena parte do texto do livro ( pág 159 e 160 ):                                                                                                       … Da mortificação do fidalgo ressaía principalmente o receio de que o infame padre, levado de velho ódio, acusasse Rosa ao marido.                                                                                           – Mas o sigilo de confissão é sagrado!…- acusou o lavrador recordado das suas antigas teologias.                                                                                                                                          -Não há nada sagrado para tais sacrílegos, senhor Pedro! Este homem vai cobrir de opróbrio meu filho, vai matar o desgraçado marido da Rosa, vai apunhalar com desdoiro a pobre mulher aos cinquenta anos de idade. Olhe que atroz situação a de duas famílias! …

Da Introdução duma novela, publicada também em 1868, com o título de “O Sangue” , vejam na transcrição da pág. 6 a opinião de CCB sobre a generalidade dos seus concidadãos e a ironia que muitas vezes usava :                                                                           O Autor :                                                                                                                                            ….Sabe que todas as passadas que dou, vão na vereda do meu calvário…                                O Amigo :                                                                                                                                         Devo prevenir-te que não estou disposto a fazer via-sacra. Se vais até ao calvário faz lá recomendações ao mau ladrão e diz-lhe que, se florescesse em Portugal, 1835 anos depois, seria visconde de Gestas, visto que ele se chamava Gestas. Diz também ao Dimas, o bom ladrão, que os do nosso tempo todos são bons como ele, e por isso todos se salvam. E, se quiseres questionar algum dos apóstolos, caso os topes, diz-lhes que, presentemente a gente graúda, à imitação de Cristo, considera os bons ladrões dignos do céu; e que , desde o facto algum tanto reparável de ser perdoado um salteador com prejuízo de terceiro, todos os salteadores de “sobrado alto”, como lhes chama a Arte de Furtar, são, sobre perdoados, honrados – o que até certo ponto é cristianismo progressivo                                                        – Então como te vai ? – atalhei eu ( o autor ), cortando a insulsa calúnia apontada ao brioso peito de muitos dos meus melhores amigos.                                                                                      – Vai-me bem, não vês? Tenho esta grande barriga em que está sepultado o melhor do meu eu subjectivo, e tenho gota neste joanete do pé direito. ….

A novela desenvolve-se com grandes intrigas, pedidos de intervenção celestial, adultério e até um duelo entre pai e filho de desfecho mirabolante.                                                         O final de “O Sangue” reza o seguinte :

… Lá está o axioma que diz : O dinheiro é sangue. Um filho só pode ser filho de quem é seu pai, quando não herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe.

Em resumo, as novelas, romances, peças de teatro de CCB são na generalidade um retrato social do seu tempo, principalmente do Norte onde viveu, e sofreu, mais tempo.  Naquele tempo, é natural que abundassem os adultérios principalmente nas classes sociais com meio de fortuna ( burgueses e fidalgos ) pois na generalidade os casamentos eram arranjados tendo em conta as fortunas dum e doutro lado e não os sentimentos dos noivos. E daí “as questões de honra” terminarem muitas vezes em duelos de morte ou assassínios.                                                                                                                                                  A grande influência da Igreja também está sempre presente e muitas vezes os comportamentos não são exemplares. O que também não admira, pois as famílias pobres escolhiam a vida eclesiástica para os filhos pois “um padre não morria de fome” nem sequer ganhava calos nas mãos. Ter ou não ter vocação era secundário.

Não sei se abri o apetite a alguém para ler ou reler CCB, mas acho que vale a pena pois ele é um dos grandes escritores de língua portuguesa

 

Lisboa, 29 de Março de 2019

 

 

3 pensamentos sobre “VOLTAR A LER CAMILO CASTELO BRANCO

  1. Reli este texto alguns dias depois da sua publicação. Valeu a pena. A quase investigação do F. F. Santos sobre Camilo leva-nos à deliciosa ou preocupante conclusão de que os hábitos, bons e maus, não se alteram com o passar dos tempos. Parabéns por este excelente “aviso à navegação “!

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  2. Fiquei agradavelmente surpreendido, com o retorno aos tempos em que, fechados em casa, líamos autores clássicos portugueses. E foi tão bom recordar a Brasileira de Prazins, ou um ou outro livro já usados, que comprava num pátio, que existia por detrás do Cinema Eden, pelo preço aproximado de um maço de cigarros. Infelizmente, CCB, não foi um dos meus escritores preferidos, com os seus contos amorosos, de paixões desfeitas e de traições arrepiantes. A minha irrequietude, inclinava-se mais para Emílio Salgari , Stephan Zweig,ou Jack London, num amontoado de aventuras, que hoje analiso com um franzir de testa. E daquele Minho e Douro, grande alfobre de escritores, CCB, conseguiu ele próprio, os seus dramas de traições mergulhadas em lágrimas, cuja leitura tanto atormentaram a minha paz de espírito, mais alimentada por uma visão de um mundo mais sublime …!

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