LICEU PASSOS MANUEL – DE 1947 A 2021

Todos nós, simples cidadãos, temos os nossos pequenos trechos de História. Mais curtos ou mais longos, mais simples ou mais complexos, não deixam de fazer parte do espólio pessoal dos que os viveram. Muitos desses pequenos acontecimentos estão umbilical ou sentimentalmente ligados a instituições, a pessoas, a empreendimentos que os tornam, muitas vezes, curiosamente únicos. Mas, como dizia Garcia de Resende: “Porque a natural condição dos portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dignas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra , paz e virtudes, de ciência, manhas e gentileza são esquecidos”

No fundo é disto que se trata: o problema da enorme maioria de todos nós é não deixar relatos dos que lhes aconteceu, com maior ou menor importância. E tudo se apaga. Restam apenas os tratados literários, científicos ou dissertações escritos por quem tinha essa obrigação ou por quem resolveu dedicar a sua vida a esse honroso mister. Tudo o resto desaparece porque, nos tempos atuais, já nem o relato boca-a-boca consegue deixar rasto vivo e fiel do tanto que se fez ao longo dos anos.

Contam hoje, principalmente, as frases espúrias, inúteis, muitas delas falsas, que inundam as redes sociais e que têm, felizmente, um período curto de vida, uma morte anunciada. Não se escreve, clica-se.

Por todas estas razões apeteceu-me hoje relembrar coisas vividas por um grupo de amigos que se conheceu com 10/11 anos de idade em 1947 e que ainda hoje se encontram, conversam e relembram. Nem todos ainda cá estão mas não deixam de ser lembrados. Estamos em 2021. Gente com cerca de 85 anos de idade que tem vida para contar, que tem legados para deixar.

Todos se conheceram no Liceu Passos Manuel, ali para os lados da Calçada do Combro, ao pé do Convento e Hospital de Jesus. O Passos Manuel foi o primeiro grande Liceu de Lisboa, inspirado no paradigma republicano dos liceus franceses, resultado da Reforma da Instrução Secundária de Passos Manuel , de 1836. O projeto original foi de José Luis Monteiro, 1882, seguidamente alterado por Rafael da Silva e Castro,1888, e Rosendo Carvalheira em 1896 e finalmente inaugurado em 1911. Recebeu muito justamente o nome de Passos Manuel (Manuel da Silva Passos) que foi deputado na corte liberal, obrigado a exilar-se em Paris por mais de uma vez, par do Reino e lider do movimento liberal de 1820 contra D. Miguel. Desenvolveu fortemente o ensino com a sua Reforma Secundária apoiando a Rainha D. Maria II.

Hoje é Sede de Agrupamento de Escolas Básicas e Secundárias com níveis de ensino de 2º e 3º ciclos, incluindo Áreas Científico-Humanísticas e Áreas de Cursos Profissionais. O Passos Manuel (como continuamos a chamar-lhe) tem hoje, no conjunto do seu agrupamento, cerca de 1200 alunos, incluindo jovens de cerca de 30 nacionalidades diferentes. O Liceu foi alvo, há poucos anos, de obras de recuperação que lhes deu um ar moderno, qualificado e elegante como antes.

No ano de 1947 em que estes jovens, agora de 85 anos, inciaram as suas vidas liceais no 1º ano, turma A, ainda não sabiam o que era a ONU, que se tinha constituido em 1945, ainda não existia a NATO que só veio a ser criada em 1949 e só em 1953, durante uma aula de francês, ficaram a saber que o Professor Egas Moniz tinha ganho o Prémio Nobel da Medicina. Muitos deles nem sequer sabiam quem era Egas Moniz… A régua de cálculo não era coisa de liceu, só veio a ser estudada, como cadeira semestral, nos cursos superiores. Claro que não havia computadores, nem máquinas de calcular, nem telemóveis, nem qualquer dos apetrechos que hoje são banais e super vulgarizados. O telefone doméstico (da APT) levava cerca de dois anos a ser instalado em casa, depois do pedido feito. Ouvia-se na telefonia (quem a tinha) as músicas de Frankie Laine, do jovem Sinatra, de Édith Piaf, de Georges Brassens ou Aznavour. Às vezes faltava-se às aulas da tarde para ir ao cinema ver os filmes da Brigitte Bardot, Marylin Monroe, Sofia Loren ou Gina Lollobrigida (não havia classificações etárias para os cinemas). Não se pense, no entanto, que não foi uma juventude divertida e, muitas vezes, atrevida. Um dos nossos colegas, exímio caricaturista, o Adriano de Carvalho (falecido, infelizmente, muito jovem) produziu um desenho sobre a vida numa aula que espelha bem a forma jocosa como encarávamos a vida escolar.

Fizemos recentemente uma visita ao atual Passos Manuel. Fomos fidalgamente acompanhados pelo Diretor, Dr. João Paulo Leonardo, que nos permitiu rever todas as zonas que conhecíamos do nosso tempo e algumas novas que resultaram das obras recentes. O Liceu (ou Escola como agora se lhe chama) está realmente muito elegante e muito bem recuperado. Visitámos laboratórios (de Química , Física e Ciências Naturais) que o bom senso das equipas diretivas conseguiram preservar e mantê-las, tipo centros museológicos, como existiam nos nossos tempos. Os espaços exteriores estão, evidentemente, alterados em alguns pontos mas com excelente adaptação ou integração. A antiga residência do Reitor do nosso tempo está a ser preparada para servir de centro de investigação escolar. Recordámos ao Diretor a loja do Varatojo que, à entrada do portão do Liceu, alugava revistas (Gibi e Guri) para levar e devolver no dia seguinte. Varatojo veio a ser figura notável na televisão com os seus programas de investigação policial. Hoje a loja é uma residência. E havia também uma varanda onde se compravam as “trapeiras” (grandes e pequenas) para se jogar à bola nos campos do liceu. Não tínhamos bolas de futebol a sério. A varanda continua mas nada mais acontece.

Ao terminarmos a visita ficámos com a sensação que tínhamos estado num local já conhecido, com o qual estávamos familiarizados. Foi a casa onde “vivemos” sete anos (dos 10 aos 17) e isso nunca se esquece.

Este arrazoado leva-nos a considerar a afirmação que hoje se faz de “que as atuais gerações são as melhor preparadas de sempre”. Estamos, genericamente, de acordo mas é indispensável fazer a comparação dos meios disponíveis naquele tempo e nos atuais. A maior parte dos alunos de 47/55 ficaram muito bem preparados com o ensino e o acesso aos meios que existiam. Foram, até àquele tempo, dos “melhor preparados de sempre”. As suas vidas vieram a provar isso mesmo. Cada um, nas profissões que resolveram escolher atingiram objetivos que lhes permitiram adaptar-se e acompanhar as gerações que se lhes seguiram e de que, alguns deles, foram mestres e professores.

Tudo tem que ser feito para que se aumente a população escolar, a sua vivência cultural de forma a que, daqui a uns anos, possam também adaptar-se e acompanhar as futuras gerações para que continuem a ser “as melhor preparadas de sempre”.

Desejamos as maiores felicidades para os alunos e ao Liceu de Passos Manuel.

Um pensamento sobre “LICEU PASSOS MANUEL – DE 1947 A 2021

  1. Gostei muito. Gostei especialmente da afirmação “os alunos de 1947/1955 foram na altura dos melhor preparados de sempre. É isso que devemos querer sempre, que cada nova geração que surge seja a melhor preparada de sempre

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