REGIÕES IMAGINÁRIAS

É bem verdade, realmente. Nenhum de nós se lembra do dia em que nasceu. Fica a sabê-lo depois de lho dizerem (e, normalmente, é verdade). Mas do acto em si, de espreitar e ver se é coisa que lhe convenha, não há memória que tenha acontecido. Outra coisa é o sítio onde nasceu. Aí sim, na grande maioria dos casos são conhecidos. Há quem nasça em maternidades o que dá ao nascimento “um não sei quê de linha de fabricação” que se dissolve por completo com a ida do nascituro para casa. Esse é o local que se guarda na memória como espaço de criação. Havia e ainda há os que nascem em casa. Esses mantêm a memória e não têm muito mais que descobrir. Se a vida os leva, mais tarde, a abandonar esses espaços já existe matéria para, em romagens de saudade ou de curiosidade, tentar mais tarde perceber ou relembrar os locais em que passou a sua criancice.

Este foi o tema base da obra imaginada pelos jornalistas espanhois Bernardo Gutierrez e Luiz Fernandez Zaurin, consumada num livro a que deram o nome de “Regiões Imaginárias” (ainda não há a versão portuguesa). Escolheram cuidadosamente dez locais não ficcionados e que serviram de ambientes para textos de 10 famosos autores. Envolveram nessa aventura uma equipa de fotógrafos e de cartógrafos para que os locais fossem corretamente identificados, com respaldo fotográfico que lhes permitisse comparar a realidade atual com aquela que é descrita pelos autores. Tiveram imensas e agradáveis surpresas, as principais das quais foram as identificações conseguidas e corroboradas pelos autores. Os autores reconhecem que o trabalho os ajudou a interpretar as realidades e a perceber alguns episódios, não como episódios de racismo mas apenas de história real e de recordações transportadas para os textos. O livro, publicado pela Menguantes, acaba por ser um invulgar guia de viagens.

Tudo terá começado com uma conversa de Gutierrez com Gabriel Garcia Marquez (antes, portanto, de 2014) sobre a sua obra “Cem Anos de Solidão” cujo enredo, embora ficcionado, se desenvolve muito em torno da sua casa de Macondo, em Aracataca, na Colômbia, onde o escritor nasceu. O próprio Garcia Marquez (Gabo, como era amigavelmente tratado) visitou Aracataca com a sua mulher Mercedes em 2007, numa modesta viagem de combóio. Pela fama grangreada pelos “Cem Anos de Solidão”, Aracataca mudou o seu nome, por referendo, para Aracataca Macondo.

Mas Gutierrez escolheu outros autores com as mesmas características literárias de ficcionarem enredos nos locais das suas vidas ou infâncias. Como foi o caso da autora nigeriana Chinua Achebe localizando o seu enredo em Umuofia, na sua novela “Things Fall Apart”. Nesse livro ela descreve as histórias imaginadas com o seu trisavô Okonkwo e reconhece que, relendo o texto anos mais tarde, tratar-se de uma marca de colonilização que teria justificado invasões violentas e forçado o suicídio de figuras proeminentes da terra. Os investigadores atuais verificaram que muito pouco tinha mudado em Umuofia desde os tempos da escrita do livro.

O mesmo se passou com diversos outros autores selecionados. Localidades como Yoknapatawpha, de William Faulkner; Comala de Juan Rulfo; Hudayb de Rahman Mounif; Vigata de Andrea Camilleri ou Malgudi de Narayan foram revisitadas e localizadas com pormenor e verificaram que as realidades locais correspondiam, de forma mais ou menos diluida pelo tempo, às intrigas e enredos engendrados pelos respetivos autores. Ler o livro “Regiões Imaginárias” deve ser um exercício excitante para quem não tenha lido nada dos autores mencionados ou, mais seguramente, nunca tenha visitado os locais por eles descritos.

Tudo isto me levou a pensar no meu local de origem infantil. No meu caso sei qual é e onde está mas seria incapaz de imaginar um enredo palpitante para qualquer novela a que metesse mãos.

Trata-se da Rua da Oliveirinha, a São Tomé, no Bairro da Graça, em Lisboa, e apresenta atualmente o aspeto que está na foto. A porta principal não é a que se vê, mas sim uma outra um pouco mais abaixo na Rua da Oliveirinha. No meu tempo não era desta cor, lembro-me de cal branca envelhecida. Dentro deste muro existia (e julgo que ainda existe) um generoso largo interior com um poço, árvores e flores diversas. Serão as mesmas que agora se vêem? Não sei. Para esse largo davam diversas habitações familiares e numa delas nasci eu. Como já disse de início não me lembro desse dia, como acontece a todos os nascituros. Nessas casas viviam diversos familiares, avós, tios e primos mas acabei essa minha genuinidade bairrista aos 3 anos de idade quando os meus pais optaram por outra solução residencial. Tenho algumas imagens muito vagas dessa época, daquelas que nos surgem por razões cerebrais que os anos comandam. Ainda sou adepto do Bairro da Graça e da sua Marcha Popular (que não me lembro que tenha ganho) mas puxo sempre por ela.

Como no Macondo de Gabriel Garcia Marquez pouco mudou durante todos estes anos. Mas pelas visitas que fiz recentemente acho que continua a verificar-se a mesma vida de bairro, de vizinhos próximos, do ramo de salsa emprestado, da mercearia onde todos se encontram, das conversas entre portas ou janelas entreabertas e de alguma tasquinha que dê alegrias aos moradores nos dias de futebol, agora que não há tasca que se preze que não tenha uma televisão panorâmica.

É a vida dos bairros de Lisboa que nunca me atrevi a descrever em textos mais prolongados. Deixei essa missão para o italiano Antonio Tabucchi (falecido em 2012), apaixonado de Lisboa e de Fernando Pessoa. Como diz o filósofo francês Sylvan Tesson: ” Nestas coisas de bairros antigos gostaria que a ecologia que nos envolve tivesse, ao mesmo tempo, o gosto de manter as fachadas barrocas, as salamandras e as doces melancolias dos museus”.

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