Resultados das eleições legislativas em Portugal 2024 e o crescimento do CHEGA

Há 1,1 milhões de fascistas em Portugal?

A resposta a esta pergunta é decididamente NÃO. Não, os eleitores do CHEGA não são todos fascistas.

Os resultados das últimas eleições legislativas têm uma componente conjuntural óbvia, explicada por vários fatores:

  • Um partido que esteve 8 anos no poder acaba naturalmente por apresentar algum desgaste, sobretudo depois de mudar de um líder apreciado e popular para outro que o não é. A alternância democrática nunca fez mal a ninguém.
  • A atuação (em minha opinião insana – mas é matéria debatível) do Ministério Público nas duas operações mais recentes Influencer e na Madeira agudizaram a perceção (porventura errada ou, pelo menos, excessiva) da existência de uma classe política corrupta e venal que vive à sombra dos partidos de poder mais tradicionais. Todos os indicadores conhecidos sobre corrupção negam esta perceção, apesar de inevitavelmente alguma sempre existir (nisto, Portugal não é diferente dos outros países, mesmo os mais liberais).

Esta componente conjuntural reduziu substancialmente a votação no PS e permitiu ao CHEGA cavalgar a onda populista da “corrupção” (mais do que sempre fez em diferentes circunstâncias).

Mas o resultado do CHEGA não é apenas conjuntural, tem fortes razões sociológicas mais enraizadas e que devem ser analisadas e abordadas de forma séria pelos partidos de poder.

É claro que há muita gente saudosista do regime fascista. É claro que há gente marialva, adepta das touradas (veja-se o resultado do CHEGA no Ribatejo e no Alentejo), machista e tradicionalista quanto ao papel da mulher na sociedade e detratora das conquistas ocidentais e liberais relativas à igualdade de género. E é claro que também há gente homofóbica e racista.

Todas essas pessoas encontraram no CHEGA a sua casa, depois de terem votado durante anos nos partidos da direita democrática (porque não havia nada mais à direita) ou de se renderem à abstenção.

Para essas pessoas, os partidos mais centristas não têm mensagem, nem têm de a ter. São pessoas, digamos, irrecuperáveis para os avanços do liberalismo ocidental. Viverão sempre nessa bolha e o tempo se encarregará de fazer avançar a humanidade apesar delas, como tem acontecido sempre, apesar de pontuais passos à retaguarda nesse caminho.

Mas essas pessoas não são, julgo, maioritárias no eleitorado do CHEGA. Há toda uma outra franja desse eleitorado que vota em protesto. Um protesto que não é conjuntural, que resulta de uma crescente desigualdade social e do esmagamento progressivo da classe média. Gente que vive com pouco acesso à habitação ou a cuidados de saúde. Jovens que se veem forçados a sustentar um número crescente de reformados numa sociedade cada vez mais envelhecida e onde o financiamento da Segurança Social se faz preferencialmente pelo trabalho e não pelo capital. Inclusive, algumas dessas pessoas votavam à esquerda e até nos partidos de protesto da esquerda radical (uma das razões do desaparecimento da representação parlamentar do PCP no Alentejo).

Este fenómeno tem características globais, não nos é exclusivo, e existe pelo menos desde a crise financeira de 2008 (o índice de Gini mundial, que mede as desigualdades sociais, inverteu a partir desse ano a trajetória positiva que trazia desde a 2ª guerra mundial). Foi ele que originou o crescimento dos partidos populistas em todo o mundo, que apelam diretamente de forma primária a esses sentimentos de impotência e abandono, dizendo às pessoas qualquer coisa que elas queiram ouvir, através da invenção de razões falsas para os seus problemas (como, por exemplo, a imigração) e de fomentarem o ódio a esses “inimigos” inventados.

O fenómeno em si não é novo. Vimo-lo na República de Weimar, por exemplo. Hitler também foi eleito pelo descontentamento da população alemã resultante de uma inflação galopante e de um espartilho financeiro sufocante imposto pelos vencedores da 1ª Grande Guerra. Os “inimigos” inventados foram, nessa circunstância, os judeus (e mais algumas etnias como os ciganos, sempre eles, e os negros), “conspurcadores” do sangue ariano. Não por acaso, Trump usa exatamente a mesma retórica nos dias de hoje, falando no bad blood vindo da fronteira sul dos EUA e do “envenenamento do sangue americano”. A História repete-se porque a natureza humana é imutável e os avanços civilizacionais a vão contrariando apenas na medida do possível.

Há uma solução simples (mas profundamente penalizadora) para reduzir a influência destes partidos populistas: é deixá-los governar, por paradoxal que pareça. Funciona como uma vacina porque eles não têm qualquer solução eficaz que resolva o problema da desigualdade social. Problemas complexos não se resolvem com soluções simplistas. Foi assim com Trump e com Bolsonaro, será assim com os outros. A derrota desses populistas não terá sido porventura definitiva (basta ver a força eleitoral que ainda têm) mas é o prenúncio de que acabarão sempre derrotados, mais tarde ou mais cedo, por serem ineficazes.

Só que esses tempos de governação populista são extremamente penalizadores para as populações e para o mundo. E, por isso, os partidos centristas têm de encontrar uma forma de chegar a esse eleitorado descontente e de, de uma vez por todas, governar para ele e não contra ele. Como é que isto se faz? Esse é o dilema.

Infelizmente, o problema não se resolve com mais do mesmo. Ele foi criado pelo capitalismo desenfreado, sem regulação, que levou a que 1% da população mundial detenha, pela primeira vez na história, mais de 50% da riqueza universal. Foi a crença cega no mercado desregulado e na globalização que criou os gigantes tecnológicos que poucos impostos pagam e que cada vez empregam menos pessoas e mais tecnologia. A UE tentou por diversas vezes conter estes gigantes e regular a sua atividade mas sem sucesso, numa óbvia cedência aos EUA e à sua “pax americana”. Enquanto continuarem a existir paraísos fiscais (e não me refiro apenas às Bahamas mas a países da UE como Irlanda, o Luxemburgo ou os Países Baixos), os gigantes tecnológicos continuarão a não pagar os impostos que deveriam pagar. E que são absolutamente necessários para fazer face ao financiamento das reformas e manter os regimes de proteção social. Se a UE avançasse no sentido de alguma harmonização fiscal e esses impostos fossem devidamente cobrados, sobraria MUITO dinheiro para fazer face aos maiores problemas com que os “deserdados” se debatem (ao nível da habitação, da saúde e da proteção social) e poder-se-ia baixar substancialmente os impostos sobre o trabalho (e, já agora, os défices nas contas públicas).

Ou seja, o paradoxo das sociedades atuais é que se quer combater as desigualdades sociais com as armas erradas que a elas conduziram. E a direita democrática, ao fazer o jogo dos populistas por razões eleitoralistas, está apenas a agravar o problema. Mais mercado e mais globalização estão a conduzir apenas a mais desigualdade. A direita europeia leu Pickety e Stiglitz mas atirou-os rapidamente para a gaveta. E combater a imigração não resolve absolutamente nada, já que o défice de natalidade nos países desenvolvidos só se resolve com imigração.

Naturalmente, a imigração tem de ser planeada, regulada, não pode ser selvagem. E nisso os partidos de esquerda têm feito um mau trabalho. Tem de haver políticas de seleção dos imigrantes necessários para colmatar as valências profissionais mais carentes e de integração digna dos mesmos nos países de acolhimento. E essas políticas têm de ser cabalmente explicadas às populações. Além disso, tem de haver ajuda internacional aos países de origem da imigração selvagem (embora evitando que essa ajuda se perca nos bolsos de estruturas políticas corruptas, o que, reconheçamos, nem sempre é fácil).

Os países desenvolvidos têm optado maioritariamente por políticas neoliberais na economia e o resultado está à vista. A “Trickle Down Economics” é uma falácia que a realidade há muito se encarregou de desmentir. O que as grandes empresas “poupam” em impostos não “pinga” para os mais carenciados como que por um milagre da “mão invisível”.  Está na altura de esquecer Milton Friedman e se reconhecer a necessidade de aumentar os impostos sobre as grandes empresas, sobretudo as tecnológicas (com pouca incorporação de trabalho), como Biden acabou de sugerir no último “State of the Union”. E de ter políticas estatais de incentivo económico nos setores corretos, que promovam a sustentabilidade ambiental e social, outro objetivo de que Biden se aproximou com a “Inflation Reduction Act”.

O Estado não tem de ser agente económico, nisso a esquerda e a direita moderadas estão de acordo, como concordam com o papel insubstituível dos mercados  concorrenciais. Mas o Estado não se pode demitir de guiar as sociedades no caminho certo, criando incentivos económicos para os inadiáveis combates às alterações climáticas e à desigualdade social. Só assim se irá ao encontro do desencanto dos “deserdados” e se lhes poderá melhorar a vida e a das gerações futuras.

Os eleitores descontentes do CHEGA não precisam do CHEGA mas de partidos centristas responsáveis que vejam mais longe. Cabe-lhes operar essa mudança, se disso forem capazes. Com coragem e sem cedências aos grandes interesses económicos que os financiam e que nos conduziram à situação atual. Se não o fizerem, as convulsões sociais no mundo só irão aumentar e não haverá CHEGA, Trump ou Bolsonaro que as resolva.

Este é o desafio das democracias ocidentais. Porque o modelo das ditaduras “esclarecidas” é uma alternativa muito pior.

2 pensamentos sobre “Resultados das eleições legislativas em Portugal 2024 e o crescimento do CHEGA

Deixe um comentário