A invasão da Ucrânia tem uma única motivação: Sebastopol

Não sou um especialista em geopolítica nem em temas militares. Tudo o que refiro a seguir baseia-se apenas nas muitas leituras que, como qualquer leigo, tenho feito sobre a guerra na Ucrânia. Mas, perdoem-me a presunção, estou cada vez mais convencido de que esta guerra assenta numa única razão: a base naval russa de Sebastopol.

Apontam-se normalmente várias razões para a guerra: o desejo expansionista de Putin, o seu sonho de anexar as antigas repúblicas soviéticas à Rússia, o medo russo de que a Ucrânia venha a integrar a NATO e outras. Julgo que todas estas hipóteses não explicam o que aconteceu.

Se é provável que Putin e a Rússia sintam alguma nostalgia pela URSS, poderiam ter começado por anexar estados bem mais “amigos”, como a Bielorússia, a Geórgia, o Azerbaijão ou o Cazaquistão. No entanto, não o fizeram. Porquê, em particular, a Ucrânia, quando sabiam que o sentimento pró ocidental é maioritário no país? E, portanto, o objetivo mais difícil de atingir?

O argumento do medo da NATO também não colhe. A Rússia convive com a NATO junto às suas fronteiras desde há muito. Estónia e Letónia são membros da NATO e o seu território confina com a Rússia. A Finlândia acabou de requerer a adesão à NATO e ninguém vê a Rússia com intenções de lançar uma “operação militar especial” contra os finlandeses. Aliás, a Ucrânia chegou a propor a não adesão à NATO como condição para a paz e a Rússia não a aceitou.

Não, a explicação tem que ser outra, se é que Putin e a Rússia estão a agir de forma minimamente racional. Ora, Sebastopol é o maior problema que a Rússia tem com a Ucrânia.

Estrategicamente, Sebastopol é vital para a capacidade militar marítima da Rússia. Esta tem acesso ao Atlântico norte pelo mar de Barents e pelo Báltico mas o único acesso ao Atlântico sul e ao lndico (via Canal do Suez) faz-se pelo Mediterrâneo através do Mar Negro. E neste Sebastopol é o único porto de águas profundas disponível para a armada russa.

Quando Kruchev cedeu a Crimeia à Ucrânia, em 1954, a utilização da base naval foi cedida à Rússia através de um tratado que expirava em 2017. Tal colocava um perigo estratégico enorme para os interesses militares russos e, por isso, a Rússia fez tudo o que podia para que a Ucrânia fosse governada por um governo pró-russo. Isso aconteceu com Ianukovytch, em 2010, que de imediato assinou com a Rússia o tratado de Kharkiv, cedendo a base naval até 2042.

Problema resolvido? Não. A ditadura tem destes problemas: quando as populações se cansam de déspotas e anseiam pela liberdade, é difícil para-las. A Revolução da Dignidade na Ucrânia, em 2014, apeou Ianukovytch e instituiu um governo democraticamente eleito pró-ocidental que, com toda a probabilidade, denunciaria o tratado de cedência da base de Sebastopol. E isso Putin não poderia aceitar. Daí à decisão de anexar a Crimeia foi um pequeno passo. E que não era sequer demasiado ousado: de facto, devido à “colonização” da Crimeia pela infra-estrutura militar naval russa e respetivas famílias, mais de 60% da população era efetivamente de origem russa.

O resultado do referendo usado como pretexto para a anexação (90%) foi, obviamente, forjado. Mas apenas na sua dimensão. Provavelmente, a maioria da população da Crimeia preferiria realmente a nacionalidade russa. O que, note-se, não acontece no Donbas, onde apenas cerca de um terço da população é russófona. Essa terá sido, aliás, a razão pela qual o Ocidente resolveu apenas não reconhecer formalmente a anexação da Crimeia e aplicar à Rússia sanções meramente simbólicas. A anexação de um território que já fora russo e que era militarmente vital para a Rússia não valia uma guerra.

O problema veio depois. A economia da Crimeia dependeu sempre de dois setores: o turismo e a agricultura. O primeiro sofreu com a anexação, passando a Crimeia a receber apenas turistas russos. E a agricultura precisa de um recurso de que a Crimeia não dispõe: água!

Na realidade, a Crimeia é abastecida de água a partir do rio Dnipro, no sul da Ucrânia. E, consumada a Revolução da Dignidade, os ucranianos “fecharam a torneira”. Se a Rússia pôde ligar-se à Crimeia através da ponte que construiu sobre o estreito de Kerch, o abastecimento de água era um problema que a ponte não poderia resolver.

E assim, a partir de 2014, a economia da Crimeia começou a cair a pique, tal como o nível de satisfação da população com a administração russa do território. Foi essa insatisfação que Putin temeu porque qualquer sublevação na Crimeia significaria a potencial perda de Sebastopol.

A solução do problema passaria, portanto, pela conquista da faixa de território unindo o sul da Rússia à Crimeia e, com isso, o controlo da água do Dnipro. O Donbas, onde os russos são uma minoria da população, foi apenas usado como pretexto para a invasão que, naturalmente, não se poderia limitar ao Donbas (regiões administrativas de Luhansk e Donetsk) mas teria de anexar também as regiões de Zaporizhzhia e Kherson, de forma a estabelecer o controlo do corredor terrestre de ligação à Crimeia.

O resto é história. A tentativa de tomada de Kyiv foi apenas um erro de cálculo de Putin, que acreditava genuinamente conseguir colocar um governo fantoche pró-russo na Ucrânia em 3 dias. Falhado esse objetivo, voltou a focar-se no único que lhe interessa: o controlo das 4 regiões administrativas do sul, o que fez através da ocupação militar (ainda que parcial), dos referendos simulados e da decisão da Duma. Formalmente, o objetivo a que se propôs está consumado. No terreno nem tanto. Porque, naturalmente, a Ucrânia jamais cederá as 4 regiões sem luta e o Ocidente não pode permitir que tal aconteça sob pena da total subversão de uma já de si frágil ordem internacional.

Dito isto, a solução para a paz talvez pudesse ter passado pela cedência definitiva da Crimeia à Rússia e pela garantia verificável do fornecimento de água à região a partir do Dnipro. Infelizmente, julgo que se foi longe demais no conflito e temo que esse seja já um acordo impossível. Agora que tem o apoio quase ilimitado do Ocidente, a Ucrânia vai querer tudo, incluindo a Crimeia e a adesão à NATO e à UE. E isso poderá tornar a guerra interminável.

2 pensamentos sobre “A invasão da Ucrânia tem uma única motivação: Sebastopol

    • Algo confusa, esta situação, sempre mal explicada na comunicação social ! Uma análise bem elaborada, que nos faz recordar como os caminhos da paz têm sido assentes sobre brasas. ..!

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