Sou de Lisboa

Desde há muitos anos que oiço dizer aos meus amigos e colegas que, nas férias, vão à terra. Os de Lisboa, coitados, como eu, não tinham terra para ir e por cá ficavam.
Dizer-se que “se ia à terra” era, há cerca de 50 atrás , sinal de distância, de esquecimento, de ir para lá do quase amigavelmente aceitável. Mas tinha um quê de sedutor, de misterioso, de desconhecido, de intrigante, mas que merecia reconhecimento. Os colegas mais beligerantes apelidavam-nos dos mais divertidos cognomes mas não deixavam de apreciar os chouriços e outras iguarias regionais que os que tinham terra lhes traziam para a prova. E as viagens, que horror, as viagens!… Eram horas em combóios primitivos, com máquinas a carvão ou a lenha que os enchiam de fuligem quando assomavam às janelas durante as viagens. As histórias das idas e das voltas preenchiam os primeiros dias dos períodos pós-férias. Histórias que deliciavam os que, por serem de Lisboa, por cá tinham ficado, insinuando que os outros chegavam do “far-west” ou de inóspitos desertos onde ainda pouca gente vivia.
Os anos passaram, apareceram belíssimas estradas, rapidíssimos combóios e a coisa começou a mudar. Os “chefes” dessas terras longínquas passaram também a acarinhar os seus lugares de nascença, a enaltecer as suas belezas e a promover as suas virtudes.
Deu-se então a explosão da “nobreza”. Deixou de se “ir à terra” e passou-se a ir visitar os avós e a as famílias que viviam, muitos deles, em palacetes antigos ou casas apalaçadas, em quintas arborizadas, em montes cheios de sobreiros e gado, em casarões sobre socalcos ou areias, com ou sem vista de mar, um retorno, enfim, ao que, para eles, era verdadeiramente histórico ou qualificado. Foi por essa época que ficámos a conhecer os fantásticos antecedentes dos nossos amigos . Estavam ou vinham a Lisboa só porque era preciso mas, logo que podiam, regressavam aos seus locais de origem onde, realmente, se devia viver. Claro que havia outros que não dispunham dessas mordomias nas suas terras, eram de origens mais modestas, mas esse encanto pela província também os beneficiou. De lá sairam e para lá voltaram, alguns só de vez em quando, mas acabando por espalhar pelo país o perfume e os afetos de que as suas regiões tanto precisavam. Ainda bem. Foi bom para eles, para o país e para nós todos que passámos a visitar essas terras com mais frequência e cada vez com mais paixão.
Para além de Portugal continental lembro-me, por experiência própria, como eram, na década de 50/60 do século passado, os Açores e a Madeira. Como se vivia naquelas terras, com ou sem a psicose da insularidade, e como elas estão hoje. Estive ao pé da cratera do vulcão dos Capelinhos  em 1958;  vi, anos mais tarde, a recuperação extraordinária de Angra do Heroismo depois do terramoto que a mutilou em 1980. Estes são, evidentemente, exemplos extremos de como se vivia no nosso país e como esse facto era diagnosticado e tipificado pelos tais que não tinham terra. E tantos amigos que todos nós hoje temos, oriundos dessas terras todas!…  Tanta gente célebre que por lá nasceu e de lá deu a conhecer o que de melhor por cá temos.
Mas eu sou de Lisboa. Nascido no bairro da Graça e flutuando pela cidade conforme a vida dos meus pais a tal obrigava. Claro que me lembro da minha Lisboa em pequeno. Lembro-me de quase tudo o que hoje se publica em recuperações  bibliográficas sobre a minha terra. Lembro-me do mercado da Praça da Figueira , lembro-me de não haver o Largo do Areeiro, nem a Praça de Londres, nem Alvalade. Imaginem do que eu me lembro! Lembro-me muito bem do rio Tejo que, por morar nessa altura na outra banda, atravessei diariamente, desde o 1º ao 3º ano,  para ir para o Liceu Passos Manuel que era, imagine-se, o liceu da minha área de habitação. Lembro-me, nos meus 13 anos, de ser plantado um enorme pinhal entre a zona do Restelo e a Ajuda. Os pinheiros cresceram, claro, estão lá todos e têm a minha idade menos os tais 13 anos da minha juventude. Estão lindos.
Sou de Lisboa e hoje também me orgulho, como os que tinham terra, da minha cidade.
Lisboa é hoje uma das cidades mais belas do mundo. Posso dizê-lo porque conheço muitas daquelas que são consideradas, estatisticamente, das mais notáveis do planeta.
Lisboa é acolhedora, modernizou-se em tudo, soube manter os encantos dos seus recantos e tem, por muito que procurem, a melhor luz natural do mundo.
Muitas coisas detestáveis foram sendo construídas ao longo de todos estes anos mas muito mais coisas boas foram também realizadas. Lisboa teve a arte de se manter inalterada em tudo o que lhe era verdadeiramente singular mas, mesmo aí, as pessoas vivem melhor e o ambiente melhorou e maquilhou-se.
A arte, a cultura, o desporto, a ciência, os grandes eventos mundiais passa tudo por cá. E quem cá vem para respirar esses ambientes enreda-se, tropeça e apaixona-se por tudo o que Lisboa sempre teve: os seus castelos, os seus monumentos, as suas igrejas e catedrais e, sobretudo, as suas paisagens, os seus miradouros, o perfume voluptuoso do rio quando dele mais nos aproximamos.
Sim, tenho terra e nela desfruto tudo aquilo a que me habituei ao longo da vida. Lisboa é para mim uma verdadeira “marca de água”. Já não sei, como sabia na juventude, os números de todas as carreiras de autocarro, de 1 a 23, de onde partiam e para onde iam. Hoje tenho que procurar, em todos os meios de transporte, as indicações necessárias para me orientar. Mas encontro-as facilmente e utilizo-as se necessário.
Não sou exclusivo nesta minha paixão por Lisboa. Outras terras e regiões, por razões familiares ou de amizades, merecem também o meu deslumbramento.
Mas eu sou daqui, de Lisboa, e nela tropeço nas coisas em que quero tropeçar e contorno aquelas em que não desejo embrenhar-me.
Sim, tenho terra e não me lembro de tanta gente a ter procurado, de tanto se  ter encantado com ela e prometer que vai voltar. Têm razão. Lisboa não se conhece num fim de semana. É preciso mais tempo, sem pressas, com olfato desperto e  palato apurado.
Consultei, por curiosidade, uma revista estrangeira de primeira e grande circulação que, num enorme artigo sobre Lisboa e o país em geral, inventariou os seguintes dez pontos de Lisboa como os mais apetitosos para o turismo internacional: Castelo de S. Jorge, o elétrico 28, a zona de Belém, os Bairros Históricos, as Festas de Lisboa, o Fado, o Terreiro do Paço, o peixe e outras especialidades, as zonas de compras, o Parque das Nações. Claro que lhes podíamos acrescentar outros pontos de referência como a vista do topo do Panteão Nacional, alguns parques desportivos, públicos e privados, que já se destacam a nível europeu.
Lanço o desafio a todos os lisboetas, os que cá nasceram ou sempre por cá viveram, que façam alarde dessa condição e que enalteçam Lisboa como a sua terra.
Que me desculpem os meus amigos, mas eu  tenho esta terra e, para mim, é a melhor do mundo.

2 pensamentos sobre “Sou de Lisboa

  1. Um surpreendente postal de Lisboa. Um postal cheio de imagens coloridas, ruídos, cheiros e vozes. Tudo me saltou à memória. Os carros eléctricos, os autocarros verdes, sempre limpos.. A carreira 3 e 4. O 5, que ligava o Areeiro aos Restauradores. Os novos bairros, sempre tão acolhedores. As amizades criadas nos colégios. Os passeios até ao Aeroporto. A passagem da adolescência para a vida de adulto. As matinés no Tivoli e no S,Jorge. As estreias no Império, às sextas, que invariavelmente acabavam no Galeto, O saudoso Monumental. O Rossio e as voltinhas no Chiado. Tudo recordei ao ler esta sua crónica…! Com dez anos de idade, tornei-me lisboeta, e assim fiquei por largos espaços, que a vida me ia proporcionando alternar, por deveres profissionais, sem nunca a esquecer. São muitos, os anos acumulados, que recordo com o carinho de uma vida, a começar pelo Areeiro, que também vi crescer, e onde sempre vivi enquanto solteiro. Uma cidade com muitas pequenas histórias, emoções e alegrias, que não paro de lembrar…! Foi muito bom recordar. Obrigado… !

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  2. Pois, meu caro, eu que não nasci em Lisboa, mas perto, ali na Cova da Piedade, sinto-me como se fosse lisboeta, ainda que a minha vida profissional me tenha reservado longos períodos da minha vida noutras cidades de país e do estrangeiro. E recordo-me como tu da Lisboa da minha meninice e juventude. Recordo-me por exemplo de no sítio onde hoje resido ter andado a colher fósseis que se viam claramente nos taludes da abertura da Avenida dos Estados Unidos da América… Não digo “bons tempos”, mas objectivamente foram-no. A evolução da cidade tem sido genericamente positiva, e agora, que regressei definitivamente à minha cidade, sinto-me bem nela.

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