O Cutty Sark e o Argus

Já em tempos me referi à Frota Branca, ou aos Cisnes Brancos, como se tornaram conhecidos, graças à reportagem de Alan Villiers e de um seu documentário que percorreu mundo, The Banken – The Voyage of the Shooner Argus. Uma viagem de acompanhamento, facilitada por convite do então Embaixador Teotónio Pereira. Um pouco do que sei, sobre a faina de pesca do bacalhau nos mares gelados da Newfoundland, mais conhecidos pela Terra Nova. Um assunto difícil de esgotar, pela quantidade fabulosa de pequenos e grandes episódios de coragem e abnegação, de uma profissão de risco, nem sempre lembrada e nem sempre considerada. Alguns destes homens, por vezes iliteratos, atraídos por um melhor salário, inconcebível em terra firme, ou de mancebos que optavam arriscar o seu futuro naquelas lides, a uma mobilização quase certa para a guerra do Ultramar. Despediam-se de suas famílias, sem a certeza de poderem voltar a sentir-lhes o calor de um abraço de chegada…! Abraços, por vezes salgados de lágrimas de alegria, tão em contraste com os da partida…! Longas histórias, tão longas como os tempos da faina, arrastando-se por meses, até verem os seus porões com a carga completa…!

E, toda esta introdução, fez-me lembrar um livro que me apaixonou, ainda nos meus vinte anos: O Velho e o Mar, de Ernst Hemingway...! Como uma história tão pequena e tão cheia de vida, me prendeu à vida solitária de um pescador, que lutou contra a força de um espadarte, acabando por o vencer com toda a sua sabedoria e paciência. Um esforço, que redundou na frustração de ver a sua presa devorada pela sofreguidão de uns quantos tubarões. Como aquela pequena história se desenrolou, com a arte de saber contar histórias, em contraste com histórias não contadas, daqueles homens dos Dóris, apenas entregues à sua solidão, por vezes perdidos nos nevoeiros traiçoeiros de um mar gélido, num pequeno barco de cinco metros e trinta de comprido, por um e meio de boca e sessenta de pontal…? Um indispensável apetrecho de pesca à linha, com o engodo, uma pequena bússola, muitas vezes sem colete de salvação e um candeeiro de iluminação a petróleo. Assim se mantinham, toda a noite, orientados pelo som dos quartos, badalados pelo sino do barco mãe, até poderem regressar ao navio com os bordos quase a meter água, pelo peso do pescado.

Pouco já se fala destes homens, ou apenas quando uma ou outra notícia nos alerta para o que ainda resta desta Frota Branca, como o Argus, que aguarda uma recuperação profunda e poder tornar-se, talvez, num museu real de toda estas histórias fabulosas da pesca do bacalhau. Talvez fosse bom, compararmos o belo exemplo que nos vem de Inglaterra, com o Cutty Sark. A compra e a recuperação de um navio icónico, quase mítico, que já recebeu o número de quinze milhões de visitantes, onde me incluo. Visita que que jamais irei esquecer…! Um navio de uma beleza de linhas, elegante, que percorreu vezes sem conta, o traiçoeiro Índico. Uma figura que permanece, com todo o seu velame, em corridas impossíveis para a sua época, dedicada ao comércio de chá entre a China e Londres...! Um navio mítico, que quase ia acabando os seus dias com a bandeira portuguesa, como Ferreira, quase pre-destinado a morrer nas águas do Tejo, como depósito de carvão, depois de ter realizado, ainda, diversas viagens entre Portugal e Colónias, Brasil e Estados Unidos…!

Temos de acreditar que o Argus possa ainda, vir a ter a mesma sorte de encontrar apaixonados por todas estas andanças do mar, num local próprio e ser admirado, deixando-o a ensinar, a quem o visite, a parte esquecida deste povo, a exemplo do Cutty Sark, em Greenwish. Tudo, sujeito ao entusiasmo patriótico, que possa conseguir a verba necessária para a sua compra e recuperação…! Assim saibamos compreender, que um país sem museus e sem livros, é um país sem história…!

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