Amarguras da Realeza

 

Desde há anos que as monarquias se debatem, no mundo inteiro, com as contradições que lhes são impostas pelos novos tempos, pelos novos hábitos, pelas cada vez mais diversas ambições  dos povos de todo o planeta. Em muitos países as monarquias ainda são respeitadas, principalmente quando o seu “aggiornamento” se vai, sabiamente, processando. Haverá países onde as monarquias ainda são indispensáveis para manterem ligado o velho cimento que une muitas das disparidades dos seus cidadãos. E se assim for necessário deverão manter-se cumprindo, no entanto, os critérios de democracia, solidariedade institucional e capacidade de desenvolvimento que possam contribuir para a felicidade dos seus povos. Mas, como sabemos, os preceitos de hereditariedade, de entropia familiar e a manutenção de privilégios desenquadrados do mundo de hoje, suscitam, cada vez mais, desagrados e polémicas por vezes quase belicosas.

Os tempos que correm são pródigos nessas contradições e, não desmerecendo nas tradições monárquicas, somos levados a levantar algumas reflexões. Um dos casos mais palpitantes, mais recente e ainda não concluido (estou a escrever num dia em que as coisas podem conhecer algum avanço) diz, naturalmente,  respeito ao famosíssimo Brexit e ao papel da monarquia neste dédalo de promessas, diligências, não-acordos e expectativas recíprocas do Reino Unido e da União Europeia.  As consequências do que se vier a passar serão sempre marcantes para ambas as partes. A Europa não vive um dos seus melhores momentos e a sua força coletiva parece, de quando em quando, ameaçar esboroar-se. Sem o apoio militar dos Estados Unidos, sem a autoridade bélica da Alemanha, a França, único país com poderes militares reconhecidos, vê-se confrontada com o enorme poderio da Turquia (membro da NATO) em disputas que o Presidente dos Estados Unidos soube criar,  recorrendo a uma estratégia aparentemente desalinhada mas que, se virmos com atenção, tem mais estratégia do que parece,  Se o Reino Unido se afastar, realmente, da Europa, quem nos diz que outros países também não o queiram fazer?   A ameaça é real e Real é também o posicionamento do Reino Unido na evolução deste problema. As forças políticas do Reino (unido ou desunido…) clamaram contra o discurso da Rainha,  do passado dia 14, em que ela declara, lendo, que o seu governo vai conduzir uma política conducente à saída. Faz parte das suas atribuições institucionais, sabemo-lo, mas não sabemos o que pensará a Rainha no silêncio e  isolamento do seu quarto, durante a noite. Será que ela é a favor ou contra o Brexit? Nunca se saberá porque as instituições assim obrigam. Mas no discurso de 14/10 a Rainha foi mais longe e, em vez da sobriedade e laconismo da sua palavra, foi mais longe e explicou quais as medidas que o “Seu” governo vai tomar nos próximos 12 meses. E dissertou abundantemente sobre pontos importantes dessa política como a “Lei e a Ordem” , o “Ambiente”, os “Transportes”, o “Brexit”, a “Saúde” e “Outras Medidas” de maior minúcia e de menor impacto. E foi por isto que os partidos clamaram, ao ouvirem, da boca da Rainha, todo um programa de governo que, politicamente, está longe de ser consagrado.  E é pena, para nós à distância e para muitos britânicos que respeitam a Rainha, que se chegue à conclusão sobre a total inoperância, por omissão, deste estado majestático.  O longo reinado da Rainha Isabel tem conhecido muitos contatempos a que o povo, com a sua antiga e sábia tradição  sempre tem sabido disfarçar e ultrapassar.  A presente situação não tem, no entanto, a mesma dimensão e, por tudo o que podemos ver e ouvir nos meios de comunicação, suspeito que os britânicos gostariam de saber qual a opinião pessoal da Rainha. Mas não podem, ponto.

Por contraste, há outras monarquias que, sem alterarem substancialmente os seus poderes, vão tomando medidas que lhes permitirão, segundo pensam, melhor harmonizar-se com as opiniões públicas dos seus países. É o caso, por exemplo, do Rei Carlos Gustavo da Suécia que retirou os títulos reais a todos os seus 5 netos. O Rei Mohammed VI de Marrocos reduziu drasticamente os seus poderes constitucionais em 2011, como resposta às primaveras árabes, transferindo esses poderes para o Primeiro Ministro.  Em Junho de 2013 a família Real belga passou a ser obrigada a pagar altos impostos por todas as suas receitas e a própria Rainha Fabiola foi acusada de fuga aos impostos  pelos bens herdados.  Para não falar só mal da monarquia britânica deve chamar-se a atenção para o facto de, em 2015, a precedência masculina na sucessão ter terminado além de a lei passar também a permitir o casamento de elementos da família real com católicos.

Para nós, republicanos há pouco mais de cem anos, estas “nuances” reais causam-nos alguma perplexidade. Apesar de tudo sabemos que o nosso Presidente da Repúblca (seja ele qual for) tem mais poder de intervenção que a Rainha de Inglaterra. E o mundo não pára. Os nossos vizinhos espanhóis estão a viver momentos de grande aflição que, segundo os sábios, podem mesmo atingir a sempre proclamada estabilidade real.  Tudo isto tem a ver com os 27 países europeus, nos quais nos incluimos, e que podem ver alteradas as condições de um projeto pelo qual tanto se bateram e que, segundo os anais, foi o primeiro e mais inovador em todo o mundo.

Que as amarguras das realezas não venham interferir nas também existentes amarguras republicanas. Para que se salve a democracia.

 

Um pensamento sobre “Amarguras da Realeza

  1. Um assunto, um pouco difícil de compreender, nos dias hoje. Talvez, por vivermos afastados de uma visão de subtilezas, onde tudo parecia perfeitamente harmonioso, aos olhos de um povo ignorante, sem cultura política para discernir a diferença entre uma sociedade de estilo monárquico e republicano. Mas, estaremos conscientes da diferença apresentada, de uma monarquia constitucional ? Da Constituição de 1822 e a actual, sabendo que a primeira, expressava já uma liberdade de expressão e de opinião, onde apenas se impunha o respeito, além da responsabilização das afirmações ? É sabido, que hoje já ninguém liga a esses pormenores, apenas emergindo a preocupação da herança directa do trono, nunca eleito pelo povo, e os receios de influências familiares, quando ainda hoje, um pouco por todo o lado, se perde a noção do respeito e a decência…! E o humanismo, baseado nas ideias iluministas, ou vice-versa, afundam-se nas discussões parlamentares, sob o olhar complacente do povo que esquece tudo, como se vê continuamente na contagem dos votos…! Que significado poderemos tirar de 51% de abstenções e da disseminação de pequenos partidos, inconsistentes, que não passam para além de um direito de afirmação ?

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