Uma subtil mancha de óleo tem-se vindo a espalhar por continentes e países que não contavam com esse fenómeno e contra o qual não se preveniram. Trata-se da insidiosa confusão ou sobreposição entre as formas de governo, de justiça e a prevalência da religião. No nosso continente europeu, a França, em especial, tem vindo a viver situações de conflito de que a sociedade se queixa mas, aparentemente, sem solução à vista. No contexto dos atentados de Paris o Professor Didier Lemaire escreveu um livro autobiográfico com o título “Lettre d’un hussard de la republique”. Este professor de filosofia diz claramente a verdade sobre a maneira como é literalmente perseguido no seu liceu, em Trappes, pelos islamitas. Como diz um colega seu, Didier é um homem de bem que deveria ter sido defendido, o que não se passou. O que imediatamente reportou a sociedade académica francesa para a necessidade de, nos estabelecimentos escolares, se ensinar a conceção republicana de laicidade (se disserem laicismo também está certo). Pareceria uma coisa fácil se, nos tempos perturbados que se vivem, a cultura científica e histórica não se misturasse, insidiosamente, com as sociologias eleitorais.
Não se pense que este problema é exclusivo de outros países e que não chegará cá. Desenganem-se. O problema já cá está. Com a capa de extremismos e negacionismos incoerentes (viu-se agora com os negocionistas das vacinas). Por feliz coincidência que talvez tenha a ver com a nossa prática de paz solidária, as diferentes religiões ou convicções ainda não colidiram com os preceitos da República laica que temos vindo a adotar. Mesmo no infeliz percurso dos mais de 40 anos que precederam o 25 de Abril de 1974, a mescla confessional, entre Estado e Igreja, foi exclusivamente conduzida pelo catolicismo. O que não será de estranhar num país que ainde hoje comunga, na sua maioria, dessa fé e das suas práticas.
Mas não podemos esquecer que a República está completamente ligada à liberdade da consciência religiosa, uma liberdade que apenas salvaguarda a coexistência pacífica das diferentes convicções. E é fundamental entender que a laicidade nada tem a ver com o ateísmo. É bom relembrar que a laicidade deu lugar ao humanismo jurídico, ao fim do “teológico-político”, e que simboliza na nossa História a criação de um Parlamento moderno, fonte da lei que respeita o interesse geral da nação. A República sempre esteve ligada à grande Declaração dos Direitos do Homem, desde 1789, segundo a qual os homens e mulheres devem ser respeitados nas suas participações comunitárias, sejam elas étnicas, religiosas, culturais, sexuais, linguísticas e até nacionais. Bem aplicável à nova Europa onde nos integrámos. A laicidade supõe, portanto, a neutralidade do Estado que, precisamente para preservar a paz entre as diferentes confissões, não se deve ligar oficialmente a nenhuma delas. Por estas razões não nos devemos equivocar com as ideologias do “direito à diferença” quando se corre o risco do regresso à “diferença dos direitos”, tema muito defendido pelos grandes liberais e anti-republicanos. Os resultados das políticas de D. Trump estão hoje à vista, o mesmo se passando já em diversos países europeus. Não é por acaso que o grande mentor dessas ideologias, Steve Bannon, se entregou à prisão nos Estados Unidos declarando-se o grande mentor do ataque ao Capitólio. Mas, entretanto, como escrevemos num texto de 31/03/2021, neste blogue, criou a sua sede em Londres e de lá influenciou alguns partidos europeus de extrema direita ou de democracia disfarçada para lançar as raízes daquilo a que chamou as raízes judaico-cristãs da civilização ocidental. Propôs-se criar uma “universidade de soberanistas”, perto de Roma, a que alguém chamou a nova escola de gladiadores.
Trumps, Bolsonaros, Putins, Erdogans e Orbans não são obras do acaso. São antes veículos de poder, sem respeito pela democracia institucionalizada para, segundo eles, fazerem face às tais diferenças ideológicas que nos assaltam ou assaltarão a todos se não acreditarmos na República laica no seio da qual vivemos.
Por isso, e regressando ao início, seria fundamental explicar a laicidade (ou laicismo) aos jovens nas nossas escolas. Para que estejam preparados para esta luta que, embora encapotada, já começou.