Sei (pelo menos já tenho idade para saber) que os dédalos políticos são muito complexos e perigosos. Desconhecem, muitas vezes, a lealdade, a ética comportamental mais elementar, a seriedade dos argumentos . Mesmo em casos que merecem reparos há muitas formas corretas de chamar a atenção para eles e, não de menor importância, propor soluções viáveis para esses problemas.
Foi o que se passou recentemente com a Saúde em Portugal. A preocupação de liquidar foi superior à de criticar e corrigir. Trata-se de um tema melindroso com o qual, incluindo profissionais do ramo, não estão de acordo e que outros defendem em sentido oposto. Não me reconheço com competência para julgar plenamente este assunto mas, sentimentalmente, por tudo o que me tem sido dado observar, revolto-me, pessoalmente, com o que tenho vindo a assistir. Trata-se, como já se percebeu, dos factos que levaram à demissão da Ministra da Saúde. Não a conheço pessoalmente, conheço apenas as suas habilitações curriculares e as opiniões que transversalmente têm sido emitidas quanto à sua capacidade de trabalho e inegável competência. Terá defeitos, claro, todos nós os temos, mas isso não valida as enormidades dialéticas utilizadas por comentadores a soldo sabe-se lá de quem ou mesmo por políticos cuja imunidade não pode ser beliscada. José Gameiro, médico psiquiatra, escreve um artigo sobre este caso apelidando-o de “Assassinato Político”, focando-se, principalmente, na relação distante que a ministra mantinha com a comunicação social.
Desviemo-nos um pouco do caso concreto e olhemos para alguns elementos que nos são fornecidos por algumas entidades estrangeiras. No Reino Unido, o tal país para onde emigram muitos dos nossos profissionais da Saúde, existem atualmente, 29.317 pessoas que esperam mais de 12 horas nas urgências hospitalares; 59 minutos é a média de espera por uma ambulância após a respetiva chamada; 6,7 milhões de pessoas aguardam por uma consulta no HMS (Serviço Nacional de Saúde britânico). Segundo o Chefe Executivo da Confederação do NHS, Matthew Taylor, há 105.000 vagas profissionais hospitalares por ocupar e as urgências estão de tal forma sobrecarregadas que 1 em cada 7 hospitais têm as camas ocupadas por utentes que não têm para onde ir. Quando os nossos profissionais de Saúde vão para o Reino Unido tentam, claro, a medicina privada. Como aliás fazem cá todos os que não têm vontade de emigrar. A medicina privada paga melhor aos profissionais do que o regime público, claro. Sempre foi assim e assim continuará enquanto a medicina privada puder, como é seu direito, desembaraçar-se de urgências complicadas e dispendiosas. No entanto, quando qualquer doente pretende ser tratado com inteira confiança nos profissionais e equipamentos, procura o serviço público. No nosso país não se passa, comparativamente, o que se passa no Reino Unido e em outros países da União Europeia.
Segundo o relatório da Comissão Europeia sobre sistemas de Saúde, Portugal não é, como ouvimos quase todos os dias na comunicação social, o pior país da Europa no financiamento público nem na qualidade do seu atendimento. Portugal tem uma despesa pública total na Saúde, da ordem dos 6,5% do PIB e, segundo esse relatório, fez importantes reformas em 2016 e 2017 para ter uma cobertura universal dos cuidados de saúde, atrair médicos e enfermeiros para zonas rurais (que muitos não aceitaram preferindo emigrar), implementando importantes soluções informáticas para redução dos tempos de espera.
Mas o que verdadeiramente minou, durante largos meses, o desempenho da ministra foram as corporações com audiência permanente da comunicação social, nomeadamente as ordens profissionais de médicos e enfermeiros, para não falar na multidão de representantes de sindicatos das mais variadas áreas da saúde a quem puseram microfones à frente permitindo-se-lhes proferirem as mais enviezadas mentiras. Durante o verão grande número de médicos teve a “amabilidade” de ir de férias nos mesmos períodos, alegando que não aceitavam os valores da horas extra que se lhes podia pagar e invocando o extremo cansaço a que tinham chegado. Finalistas dos cursos de medicina e enfermagem foram solicitados a apoiar alguns serviços que, naquela fase, sofreram maiores atrasos de atendimento pelo facto dos tais profissionais terem ido todos de férias e alguns, como veio publicado, terem ido prestar seriço nos hospitais privados como tarefeiros. As Ordens interferiram e puseram alguns desses finalistas a dizer o que elas queriam. Teriam garantida a sua inscrição nas Ordens.
No regime anterior ao 25 de Abril de 1974 existia, constitucionalmente, uma Câmara Corporativa, que defendia os interesses dos grupos profissionais seus associados. Também havia sindicatos mas esses estavam por conta do “sistema” vigente. A comunicação social passava, diariamente, pela censura, sofria das maldades do “lápis azul” e, portanto, tudo se passava na “maior das tranquilidades”.
As corporações estão a voltar, a comunicação social, sem o lápis azul, dá-lhes acolhimento e o clima social turva-se com as notícias falsas ou deturpadas, com os apoios políticos ocultos nos bastidores, com o único objetivo de descredibilizar quem lhes interessa, a despeito do trabalho que esteja a fazer, com resultados melhores ou piores mas que poderiam, honradamente, vir a ser discutidos. Mas não. Um dos trunfos mais fortes das guerras é o cansaço. Vilipendiar é, como se vê, gratuito. Suportá-lo por muito tempo torna-se insustentável. Daí à demissão é um passo, de cansaço e de menosprezo pelos “miasmas” que, à sua volta, proliferam.
Muita gente não vai concordar com aqui fica escrito. É assim mesmo, têm esse direito. Como eu tenho o direito de, com a minha falta de preparação na área clínica mas com sobeja experiência de utente de serviços de saúde (felizmente não muito graves), me repugnar por estes óbvios procedimentos que fazem escola no país onde vivo.
Falo com muita gente que já percebeu tudo isto e que, quando surpreendida por um caso grave de saúde, têm a possibilidade de recorrer, com confiança, ao Serviço Público de Saúde.
A luta é, como se sabe, de dar aos hospitais privados os maiores privilégios das verbas pagas por todos nós. Mas acredito que o SNS, como criação base do nosso sistema democrático, se manterá e irá melhorar, embora lentamente, ao longo do tempo.
CARO MANUEL JOSÉ
Um artigo muito bom e muito realista sobre o assunto. Parabéns pela coragem e lucidez!
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Não somos nenhuma excepção, num mundo que resolveu andar aos zig-zagues. Um mundo, à procura de soluções que tardam demasiado tempo, consumidos antes de verem a luz do dia…!
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