Na sua estratégia de publicidade e de largas audiências o Canal 4 britânico resolveu lançar um programa de aparente diversão lúdica que se transformou, afinal, num curioso tema de discussão.
O Canal comprou num leilão respeitado uma aguarela pintada por Adolf Hitler que era, segundo reza a História, um prolífico aguarelista. E resolveu também criar um programa com audiência de estúdio para que se pudesse decidir se o apresentador do programa, Jimmy Carr, deveria ou não eliminar a pintura com um maçarico de gás.
Para completar esta imaginosa iniciativa o Canal resolveu comprar pinturas de outros artistas polémicos ou “problemáticos” como Picasso, caracterizado por ter um feitio insuportável e ser um irredutível misógeno e Rolf Harris, reconhecido pedófilo.
Além de Hitler, Picasso ou Rolf Harris, muitos outros artistas fizeram coincidir as suas vidas com tendências, hábitos ou vícios (como se lhes queira chamar) que, nos tempos que correm, suscitam discussões interessantes sobre as artes e os seus autores.
Extrapolando, por momentos, o tema aqui em apreço, recorro a uma foto e um texto, da autoria do meu amigo Carlos Matos Gomes, que diz o seguinte:

Ativistas? As duas mulheres que tentam destruir uma obra prima da nossa cultura – Os Girassóis, de Van Gogh – são classificadas pelos nossos meios de comunicação como ativistas. Daí que os talibãs que destruiram uma obra prima da civilização indiana – os Budas do Afeganistão – sejam também ativistas. De facto os “ativistas” de um movimento qualquer fundamentalista são tão terroristas quanto os fundamentalistas islâmicos. As suas lógicas de intolerância e de desprezo pelos outros são exatamente as mesmas.
Como podemos perceber, a discussão das obras e dos seus autores leva-nos, decerto, muito longe. Não há muitos anos os países foram invadidos pela pandemia do colonialismo. Começou nos Estados Unidos (sempre à frente!!!) e prolongou-se por muitos outros países com a destruição ou remoção de estátuas ou bustos de personagens de antigos colonialismos. Entre nós, que não perdemos o sabor da moda, deixámos que a ignorância se manifestasse com alguns “ativistas da noite” (sempre ao abrigo do anonimato) a grafitar a estátua do Padre António Vieira, no Largo da Misericórdia. Talvez a misericórdia de alguém os tenha mandado ir para a escola para saberem quem foi Padre António Vieira.
Surge agora este golpe comunicacional de modernidade do Canal 4, propondo que haja decisões sobre a destruição de obras dos 3 autores acima referidos. Claro que uma aguarela de Hitler arrepia muita gente, mais pelo o autor do que pela obra que, se calhar (não a conheço) não vale nada. Mas havemos de concordar que se decidissem destruir o quadro de Picasso, isso poderia dar origem a um “armegedão” cultural incalculável. O nosso rei D. Carlos deixou uma obra vasta de pintura (principalmente sobre temas navais) que tem sido muito acarinhada, bem como o Primeiro Ministro Winston Churchill que passou a sua reforma agarrado aos pincéis. Bem sei que ele ganhou a guerra e os arrepios nunca apareceram a ninguém. Talvez aos seguidores de Hitler (que ainda os há) mas esses nem sequer se dão a conhecer.
É difícil separar as obras dos seus autores. Se estes foram pessoalmente detestáveis poderão, apesar disso, ter deixado boas obras. Que serão sempre apreciadas nas duas vertentes dessas duas luzes: a do autor e a da obra. Eu, se tivesse meios, nunca compraria uma tela de Hitler, deixava-a repousar na parede de um museu qualquer.
Claro que o Canal 4 poderá pagar caro esta sua iniciativa, incluida nos festejos do seu 40º aniversário. Até porque o apresentador, Carr, foi, recentemente, muito criticado pelas suas desajeitadas graçolas referentes ao holocausto.
As audiências não podem ser o fim em vista. Mais importante é a ética. E haveria muitas formas diferentes de celebrar os 40 anos da estação.
Muito bem apreciado
Abraço
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Depois de ler este interessantíssimo texto, fiquei pensativo. Já tinha ouvido falar sobre as pinturas de Hitler. O que faria eu, se tivesse na minha posse algumas dessas famigeradas aguarelas ? Odiando todos esses tempos não esquecidos, queimava-os ? Ou guardava-os num lugar recôndito do meu sótão, ao abrigo de qualquer má interpretação sobre os meus gostos e tendências, vivendo num desassossego interminável de diabólicos sobressaltos de consciência ?
Felizmente, nada disso aconteceu, nem eu teria dinheiro para os adquirir, ainda que me tornasse rico de um momento para outro. Mas, compradores, de certeza que os há, e não seriam assim tão poucos…!
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