O Prémio Camões de literatura é consagrado à língua portuguesa e, com essa atribuição, premeia-se um autor que, ao longo da sua carreira, tenha contribuido, de forma indesmentível, para os primores da nossa língua.
Este ano fui surpreendido (ignorância minha) pelo nome do escritor brasileiro Silviano Santiago, homem de 86 anos, de longa data ligado às letras e, segundo a citação, “com perfil de intelectual interventivo, com uma visão abrangente sobre o que é a cultura, materializada em reflexões sobre múltiplos domínios, desde Machado de Assis aos estudos culturais, Caetano Veloso e o tropicalismo”. E diz-se mais: “É um merecido reconhecimento para uma obra e uma vida dedicadas à literatura, enquanto romancista, ensaísta e professor.” Encerra-se a notícia informando que, de acordo com os dados da Biblioteca Nacional de Portugal, não há qualquer obra de Silviano Santiago publicada no nosso país.
Imagine-se como, perante todas estas declarações , me senti ignorante e descuidado relativamente a um tema que costumo, sem ciência caucinada, acompanhar com interesse. Corri, no entanto, a procurar numa das velhas estantes um livro brasileiro que me foi oferecido há uns anos (Editora Objetiva) com o título “OS CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO”. Edição de 2001 referindo-se, naturalmente, ao século XX. Nesta difícil seleção feita por Italo Moriconi lá encontrei, como prémio de compensação, o nome de Silviano Santiago e o seu conto “Dia de Vinho e Rosas”.
Na breve apresentação do livro, o editor aponta “os diferentes caminhos da literatura no início do século; a consagração do modernismo nos anos 40 e 50; os conflitos de identidade dos anos 60; a violência da vida urbana dos anos 70; a exploração sem censura do corpo dos anos 80; a criativa irreverência dos anos 90 – os contos aqui reunidos são, antes de tudo, um registo prazeroso de histórias que conquistaram leitores não por sua excelência académica, mas por serem capazes de seduzir, divertir, emocionar.”
Não vou respigar outros nomes incluidos na obra pelo facto de, quase todos eles, serem famosos e bem conhecidos dos portugueses. Não sei se este livro estará em vias de piblicação entre nós mas, se assim não for, não será difícil mandá-lo vir do Brasil. Vale a pena.
O conto de Silviano Santiago inclue-se no grupo dos anos 90 com o sub-título de “Estranhos e Intrusos”.
Deste longo conto com cerca de 10 páginas vou apenas respigar alguns parágrafos que retratam a amargura de um homem solitário, abandonado, sem alegrias presentes e com saudade das passadas.
“Você acorda durante a noite. Você não sabe onde se encontra. Que horas são? Não há razões para você viver onde está morando. Você se levanta da cama no escuro. Sente uma corrente fria de ar nas pernas descobertas. Ela sobe pelo corpo até à cabeça. A cabeça se confunde com os pés. Você se aproxima da poltrona que dá para a janela e de lá, sem acender a luz do abajur e já sentado, redescobre os próprios olhos, vendo a rua deserta e iluminada às quatro horas da manhã. A poltrona é velha e pouco cómoda. Está encardida pelo uso. Ela não combina com você. Você não combina com ela. ……..
Não foi fácil caminhar de volta para casa na sexta-feira. Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias. Já em casa, com os flocos de neve da tempestade você não sabe por que chamou o Roy ao telefone. Não o fazia há muitos anos. Quinze pelo menos. Nem uma carta, nem uma palavra amiga trocaram durante todo esse tempo. Você partiu sem lhe deixar o endereço. Um dia você não quis revê-lo. Você não tem vontade de revê-lo. Tem vontade de conversar……… Sob o pretexto de necessidade de falar com alguém você discou o número de Roy. Você tinha convivido com ele durante seis anos. Fora amante dele………….. Marcou o número e imaginou uma longa conversa… falando de tudo o que haviam em tempos falado…Você aperta as teclas do telefone. Compõe o número de Roy. Uma voz gravada do outro lado diz que o número discado se encontra desativado. ……… A telefonista informa que o assinante trocou de número. Nada a fazer, são regras da companhia.
É difícil, num conto de dez páginas, transmitir o sentido de solidão, abandono e amargura com mais intensidade. É um texto triste. Não será este o sentido único dos seus livros e textos. Vou procurar melhor. Acredito que um Prémio Camões, concedido a um autor de 86 anos, espelhe uma vida inteira de dedicação à literatura e transmita, no seu conjunto, a beleza que a língua portuguesa sempre nos proporciona pela mão destes grandes autores.
Vamos ler Silviano Santiago.
Pessoalmente, tenho andado um pouco afastado da leitura de livros brasileiros. Talvez, os tempos de hoje com outras preocupações, não tenham favorecido as atenções para a imensidade que o Brasil sempre forneceu com belíssimos romances desde Érico Veríssimo. O nome de Silviano Santiago, aguçou-me a curiosidade e este prémio será o ponto de partida para novas leituras, acompanhada pela forma repousante tão característica do brasileiro…!
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