Desta vez fui influenciado pela leitura do último número especial da revista francesa L’OBS que se intitula “Democracia e Populismo”. Recomendo a sua leitura a quem o puder fazer por se tratar de um conjunto bem organizado de artigos e depoimentos, recolhidos junto de 12 professores, filósofos ou politólogos franceses, que se interrogam e nos interrogam sobre os caminhos em curso da democracia. Tratando-se, embora, de intelectuais franceses, com uma maneira de ver o mundo à luz da sua cultura própria, não deixam de ser artigos com o maior interesse, com referências e sustentação de valiosas expressões oriundas de outros continentes e culturas.
O tema não pode ser mais atual. Olhamo-nos e olhamos para o mundo com angustiantes interrogações, assistindo às críticas mais severas ao modelo de democracia existente e, além disso, às formas alternativas que vão surgindo por toda a parte, referenciando-se como “modelos mais credíveis de expressão popular”. Julgo que não devemos abster-nos de compreender esta possível revolução mas, pelo contrário, tentar compreendê-la e, para quem puder, nela participar.
Evidentemente que vou recorrer a um conjunto de pontos de vista expressos nesses artigos, pelo menos aqueles que me suscitaram mais interesse. Recomendo, no entanto, aos meus seguidores, que não deixem de ler a revista, como já fiz no início deste texto.
A democracia é, como se sabe, imperfeita. Nunca, entre as duas últimas guerras mundiais, as democracias estiveram tão fragilizadas. Os governos do povo, pelo povo, para o povo mostram sinais de fadiga por toda a parte. O Brexit, a eleição de Donald Trump, o que se está a passar na Hungria, na Polónia, na Turquia, os escândalos de corrupção na Coreia e no Brasil são sintomas preocupantes de todas essas fragilidades.
Por todas estas razões e muitas outras os cidadãos, de uma forma geral, de acordo com as sondagens, acreditam cada vez menos na bondade da democracia. Pior que isso, quase um quarto das pessoas consultadas preferem um regime autoritário. E, no entanto, continua a ser importante relembrar que a “democracia é o pior dos sistemas à exceção de todos os outros”… Ela tem, portanto, que se reinventar para sobreviver.
A dinâmica democrática assenta, fundamentalmente, em três vetores: a política, o direito e a história. Esta combinação não tem vindo a provar-se harmoniosa. A política, com a autoridade decorrente das eleições, pode ser tentada a limitar os direitos individuais. Por outro lado, o desenvolvimento sem controle das liberdades individuais pode conduzir, suavemente, à anarquia. A história, pelo seu lado, como forma de economia capitalista, entra em contradição com os direitos individuais acentuando as desigualdades sociais. Por tudo isto a democracia é um regime instável.
Como sair desta crise social? As políticas devem renovar o diálogo com os sindicatos, com os intelectuais, com todos os atores que se encontrarem perto da realidade social. Renovar, com a dimensão coletiva da democracia, significa renunciar a algumas liberdades. Mas se qualquer liberdade não der valor a uma ação real, não tem qualquer valor.
A democracia suporta uma interessante analogia com o que se estuda na físico-química: passa pelos três estados sólido, líquido e gasoso.
Nos anos de 1980 a democracia estava no estado sólido. Era a bipolarização, a estruturação nos dois campos da esquerda e da direita. E a clivagem entre esses dois campos cobria um enorme âmbito de discussão. Era simplesmente o público contra o privado. Mas o sistema estava cristalizado.
Nos anos 2000 a democracia passa ao estado líquido, em que a matéria se adapta ao recipiente em que se integra. A tal clivagem direita-esquerda fica relativizada com a multiplicação de alternâncias, de coabitações e de aberturas. A emergência da questão europeia veio acentuar, ainda mais, a desconformidade dessa tal clivagem. A diferenciação entre as duas partes é, cada vez, menos clara. Neste estado líquido a alternância ainda persiste e o sistema partidário mantém, por isso, alguma consistência.
No estado gasoso já não tem nem forma nem volume próprios, as partículas têm fracas ligações entre si. Nesta fase a democracia está mais informada, os comportamentos eleitorais além de mais voláteis, são erráticos. Esta democracia em estado gasoso torna-se inquietantemente explosiva. Os comportamentos eleitorais são quase que imprevisíveis e podem conduzir à eleição de sistemas totalitários e desafiantes. O maior perigo deste estado gasoso da democracia é a indiferença dos cidadãos.
Por outro lado a demografia assume papel relevante nas sociedades. As democracias estão a envelhecer e esse envelhecimento conduz ao conservadorismo, à aversão pelo risco e mais disponibilidade para os temas da segurança. O mundo mediático contribui para a afirmação destes paradigmas e, por isso, é difícil imaginar a democracia sem uma ordem mediática relativamente estável e legítima.
Fala-se hoje nas “Redes da Cólera” em que todos os sistemas digitais podem conduzir àquilo a que os investigadores já chamam a “fachosfera”. Num livro muito divulgado de Dominique Albertini e David Doucet já aparecem inventariadas as 5 famílias da “fachosfera”: “Os Identitários” (propõem a eliminação de imigrantes e muçulmanos); “A Nova Direita” (elogia a civilização europeia, em particular as suas raízes pré-cristãs, célticas, germânicas e nórdicas); “Os Nacionalistas Revolucionários” (promovendo o chamado fascismo de esquerda); “Os Católicos Tradicionalistas” (visão tradicionalista da igreja e da família, propondo uma realeza contra-revolucionária) e os “Neo-Nazis”(já bem conhecidos a partir dos anos de 1990).
É com este concerto de interesses que a democracia tem que se bater e evoluir. Para se evitar a continuação de exemplos como o de Viktor Urban, na Hungria, que disse ter respirado de alívio quando Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos. E já o modelo húngaro foi reproduzido na Polónia quando o Partido Conservador proclamou : “Vamos fazer Budapeste na Polónia”!
Falou-se aqui da eleição de Trump. Mas os analistas já o apelidaram de “Trump, um Anarco-Fascista”. “As primeiras e espantosas medidas deste Presidente parecem insensatas mas elas obedecem a uma verdadeira estratégia do caos. Trump não hesita em lançar-se numa confrontação deliberada, com a intenção de desacreditar os contra-poderes habituais de uma democracia.” Há que impedir esta imensa derrapagem americana e internacional e, para isso, os americanos e todos os povos do mundo têm que perceber o que se está a passar e o que poderá vir a passar-se.
A revista inglesa The Economist desenvolveu um trabalho de investigação e produziu aquilo a que chamou a “Geografia Mundial da Democracia”. Baseou o seu trabalho num conjunto de 60 critérios, definiu uma escala de 1 a 10, e permitiu-se estimar que, em 2016, 4,5% da população mundial vivia em democracias autênticas; 44,8% em democracias imperfeitas; 18% em regimes híbridos e 32% em regimes autoritários.
Portugal aparece com uma classificação de aproximadamente 7,92/7,93%, aliás como a França, o que lhe atribui a designação de democracia imperfeita. A melhor classificação vai para a Suécia e a pior para a Coreia do Norte, claro.
Como se vê a democracia tem que se rejuvenescer, reabilitar-se, encontrar novos caminhos e novas soluções. Não nos esqueçamos, no entanto, que a “Democracia na América”, de Alexis de Tocqueville, publicada em dois volumes em 1835 e em 1840, foi redescoberta em 1970 e passou a ser um guia inestimável para todos os que estudam e se interessam pelo aprimoramento da democracia. A idolatria eleitoral tem que ser atualizada em função dos antigos e novos padrões da sociedade. As relações entre a justiça e a política têm que ser reguladas e eticamente compreendidas. Elas têm sido conflituosas, os escândalos de negócios têm aparecido por toda a parte e a justiça não tem feito o que lhe compete. Tem-se demonstrado que essa separação de poderes é mais fácil de teorizar do que praticar.
Qual a solução para a próxima normalização democrática? Talvez não saibamos a saída para esta revolução mas há pontos de diagnóstico que é bom ter em atenção. Alguns deles estão inventariados no excelente artigo que vos recomendo e há, apesar de tudo, soluções pontuais que vão fazendo os seus caminhos.
Continuo a pensar, como nos disse o velho Winston Churchill, que o “pior dos sistemas é a Democracia, com exceção de todos os outros”.
Aguardemos… aguardem.
Excelente artigo de opinião…! Não sei o que se passou comigo, mas ao ler cada palavra sobre a realidade e a natureza das Democracias que se vivem na actualidade, elas fizeram-me sentir, com toda a crueza da verdade, o quanto temos andado à deriva, na ilusão de uns de bons ventos, que nos levassem a porto seguro. Um sentimento de desconforto que sinto, ao ler as enormidades proferidas por uma boa parte dos políticos mal preparados ou excessivamente preparados, com a sua demagogia, a favor de um populismo enganador, sempre aproveitados pela comunicação social, no seu pior papel de mensageiros. Assisti, ainda jovem, extasiado pelo clamor da liberdade, ao desenrolar de uma democracia, que desde há alguns anos, vinha a desenvolver-se e a consolidar-se após a 2ª Guerra Mundial. O Brasil do final dos anos 40…! Uma democracia plena, americanizada, a liderar um novo mundo cheio de liberdade e de progresso. Depois de Dutra, apareceu Getúlio, com todo o seu vigor e empenho no desenvolvimento de um país que prometia as maiores esperanças a todo o mundo. E aconteceu ! Até que um dia, tudo se modificou. Outros países, num ambiente de um Pan-Americanismo, que durante o esforço de guerra em favor de uma América libertadora e de um mundo melhor, começaram a decair, face a movimentos de libertação democrática, na sua maioria, com tiques neo-despóticos. Toda essa vaga de libertação, varreu a Ásia e África, com maiores ou menores razões, mas sempre em prol de uma democracia que nos confundia a ideia do que era ser democrático, ou não ser democrático. Pois, ainda jovem, parei ! Parei de pensar, para além do que me tinha sido mais apaixonante : A Liberdade. A Igualdade. A Fraternidade. Os Deveres e os Direitos dos Cidadãos. O respeito mútuo. A Justiça… ! Sei que não é fácil, mas foi aqui que fundeei, lancei ferros e amarras…!
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