Hoje é o Meu Dia

Não levem a mal, não estou despudoradamente a apropriar-me de algo que não seja meu. Eu, como muita gente de mais avançada idade, nunca deixei de me sentir como uma criança ou, pelo menos a pensar como ela. As crianças são maravilhosas a pensar, a fazerem perguntas espantosas às quais nos vemos, por vezes, aflitos para responder. Claro que se interessam por livros e leituras de maior ingenuidade mas, quase sempre, de grande beleza. Quantas vezes já nos surpreendemos a nós próprios a ler um livro infantil?
Lembro-me do meu primeiro dia de aulas na escola, a emoção que tudo isso representou, o imenso desconhecido que iria enfrentar. Depois vieram as “partidas” nos intervalos, as correrias do “toca e foge” que acabavam, muitas vezes, com joelhos esfolados. Os fantásticos pontapés na bola e a imediata constituição de equipas com base nas preferências clubísticas que ficaram para a vida toda.
Lembro-me dos primeiros dias de aulas em todas as instituições de ensino por onde passei. O Liceu (o antigo liceu) foi talvez o mais palpitante para mim e para todos os colegas que se tornaram amigos. Eram as crianças adolescentes que inventavam tudo o que não lhes era ensinado. As turmas eram, em geral, tumultuosas, mas os excelentes professores que tivemos lá iam controlando aquela turba. Nos intervalos jogava-se o “firix” nos bancos de cimento dos pátios. Era um jogo com moedas antigas, da monarquia, que simulavam os tabuleiros de futebol. E havia campeonatos e campeões. Claro que os “tablets” de hoje dão muito mais alternativas, mas não sei se exigem mais destreza que o velho “firix”. Nas aulas práticas de química as misturas dos líquidos raramente davam as cores que o professor e o livro nos apregoavam… Claro que a malta falsificava as operações. E todos os professores tinham alcunhas, como ainda hoje têm. Havia aulas de música (canto coral) nas quais os mais dotados eram sistematicamente gozados. Mas também havia aulas de Educação Física onde o “pessoal”, como hoje se diz, praticava desporto e extravasava as suas garotices. Lembro-me de, uma vez, termos posto uma rolha no tubo de escape do carro de um professor. O carro era velhote mas o professor era delicioso. Nada nos aconteceu com esta tropelia. Havia o “cenoura”, o “caixa d’óculos”, o “gordo”, o “enfezado” mas todos ficaram amigos.
Os tempos foram passando e muitos dos meus colegas e sempre amigos foram, ao longo das suas vidas, relembrando a época maravilhosa das suas criancices.
A criança que há em mim nunca me abandonou nas brincadeiras com filhos e netos. Sempre praticámos as grandes cenas de luta no chão, todos ao monte, a que chamávamos os “granéis”. À vezes usávamos termos mais atrevidos, quando a mãe não estava presente, como andar à “porrada” e outras que tais. Os jogos de “Subutteo” foram a nossa glória. As equipas devidamente esquipadas e os fantásticos piparotes nos bonecos superaram a nossa imaginação. Brincadeiras de crianças que ainda hoje persistem embora devam ser, claro, acauteladas.
Pais, professores e crianças constituem o núcleo mais essencial das nossas vidas e das nossas sociedades. É bom que haja muitas crianças (devia haver muito mais, mas a vida não deixa) para que possam aprender o muito que se lhes pode ensinar, deixando-as participar naquilo que mais gostem de aprender e se sintam mais vocacionadas mas que, no meio de tudo isso, possam brincar.
Escangalho-me a rir quando ouço boas piadas da criançada, umas mais picantes que outras, e peço por mais. Muitas vezes outros adultos olham-me com óbvio sentido crítico. Mas eu não me importo, acho que os adultos não têm que ser sempre tomados por importantes. Muitas vezes, na rua, quando vejo uma criança a chorar, aproximo-me e pergunto-lhe se ela está triste. Ela encara-me, interrogando-se “quem será este?” e os pais riem-se por alguém ter falado mais com eles do que com a criança. Sentem-se compreendidos e isso é bom.
Ser mãe ou pai não é fácil. Ser criança é extraordinário, sobretudo quando todos os pais do mundo possam pensar e colaborar no alívio de todos os milhares de crianças que não podem ser felizes. Mas não é por isso que deixam de ser maravilhosas. Ser criança é único e aparentemente passageiro na idade. Mas estou certo que é permanente, indelével para toda a vida. Que diferente seria o mundo se todos pudéssemos deixar voar as nossas facetas de crianças.
Adultos, ajudem as crianças a serem crianças.
Desculpem esta minha criancice, mas hoje é o meu Dia!

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