Ontem fomos aos Santos

Esta coisa dos Santos Populares tem mesmo que se lhe diga. Como já declarei num texto anterior nasci em Lisboa, no bairro da Graça, sou de Lisboa e nunca reneguei essa qualidade. Ao longo da vida fui seduzido e quase transplantado para o Algarve e passei a defender, com unhas e dentes, as virtudes e as complexidades dos algarvios. Mais as virtudes do que as complexidades porque, nessa altura, o ideário algarvio com que convivo supera as minhas objeções e reconduz-me, com talento, às tais virtudes que reconheço e exalto.
Mas a paixão lisboeta é muito forte, até para uma algarvia que, acidentalmente, nasceu em Lisboa. São marcas de água que não se apagam com os anos.
Vi, na noite de 12, pela televisão, partes das marchas populares, esperando que a do meu bairro da Graça pudesse ser vitoriosa. Não foi e, realmente, não podia ser. Tem sido assim todos os anos. Lá vai ficando a meio da tabela, mas com o agrado e a alegria de todos os bairristas.
Há anos que não me deslocava àqueles locais sagrados onde estas coisas se vivem e nos encantam. E ontem, dia de Santo António, não resistimos: lá fomos para o Largo da Graça, não longe da casa onde nasci, para um arraial a valer.
Convivemos, durante o fim de tarde e princípio da noite, com tudo aquilo que não tínhamos esquecido: os cheiros, os fumos dos assadores, as larachas com piada de umas bancas para as outras, a música estridente, vinda de um palco montado pela Junta, acompanhando todas as marchas e canções das nossas anteriores etapas de vida.
Tivemos a sorte de arranjar uma mesa e duas cadeiras. Fui a uma banca e pedi uma dose de caracóis. “Não temos. Vá aqui ao lado (eram vizinhos ou primos) e o resto arranjamos nós”. Assim foi: um caldo verde, um chouriço assado, a tal dose de caracóis da banca do lado e dois copos de sangria “maravilhosa”, como estava lá escrito, e jantámos ao som da música. Julgo até que nos balanceámos ao ritmo das mais conhecidas (que são todas e sempre as mesmas) e foram, enfim, momentos memoráveis. Para acabar fui buscar duas farturas quentinhas, acompanhadas por dois cafés apetitosos.
E ouvimos cantar, os muitos portugueses que lá estavam como nós, os estrangeiros que se aventuravam e que bebiam, no meio de todos os enfeites e balões da época.
No meio da confusão de carros elétricos, autocarros e muitos, muitos tucs-tucs (como é que isto se escreve interessa pouco) vimos a alegria na rua, os sorrisos de um bairro, igual a todos os outros onde se continua a cultivar a amizade, a vizinhança, a genuinidade popular. Sentimo-nos como eles, sentimo-nos como todos, ficámos com o tal brilhozinho nos olhos.
Durante o passeio de ida e volta de e para o sítio onde tínhamos estacionado o carro (imaginem…) vimos prédios recuperados, pintados, habitados, gente a sair e a entrar de pequenos restaurantes ou agradáveis tasquinhas onde se podia comer o mesmo que nós comemos. Lisboa está viva e os santos ajudam. O Santo António, que é de Lisboa e não de Pádua como se apregoa naquela cidade italiana (as imagens de barro são bem diferentes das nossas), traz-nos sempre, nesta época, um convívio ecuménico e solidário que bem poderia servir de exemplo para todo o resto do ano.
Claro que, para tudo acabar em bem, ofereci um lindo manjerico, com quadra e tudo, à minha “cara metade”. Comprado à porta da extraordinária Voz do Operário, misturado com uma conversa, quase de vizinhos, com quem estava ligada ao colégio. Da Voz do Operário saiu, já há muitos anos, uma que foi das melhores turmas que a minha professora e companheira acompanhou na Escola Nuno Gonçalves, não longe da zona em que nos encontrávamos. É rica a vida, não é?

E conforme nos íamos afastando, íamos ouvindo e relembrando os versos da Amália:

Lisboa já tem Sol e cheira a Lua
Quando nasce a madrugada sorrateira,
E o primeiro eléctrico da rua
Faz coro com as chinelas da Ribeira.

……………………

Um craveiro numa água furtada
Cheira bem, cheira a Lisboa,
Uma rosa a florir na tapada
Cheira bem, cheira a Lisboa.

……………………..

A fragata que se ergue na proa,
A varina que teima em passar,
Cheira bem porque são de Lisboa,
Lisboa tem cheiro de flores e de mar.

Se não conviveram com este Santo António ainda vão a tempo do São João e do São Pedro. Não são só do Porto e de Faro. Em Lisboa também há. E as sardinhas, os caracóis e as farturas são os mesmos. Não faltem, não percam estes recantos e estes pequenos deslumbramentos da vida. Se possível, na Graça, que é o meu bairro!

Um pensamento sobre “Ontem fomos aos Santos

  1. Extraordinário ! Adorei ler, palavra por palavra, toda esta crónica sobre as festas lisboetas. Mas olhando para dentro de mim, verifico que há qualquer coisa, que tenho vindo a perder com a idade. Não sendo, de modo algum, negativo, e muito menos para lá virado, verifico que tenho procurado o conforto dos cantinhos, para me refugiar dos encontões, dos gritos da pequenada, das conversas em alta voz pelo telemóvel, que dispensariam estes, se a distância não fosse assim tão grande, da procura de um lugar para o carro, livre de bilhetinhos amorosos da polícia e dos cheiros das churrascadas ! E toda esta conversa, para dizer o quê ? Para dizer que estou a ficar velho ? Talvez cansado e desiludido ? Ou para dizer, que estou a ficar cansado do mesmo de todos os dias ? Talvez seja isto mesmo…! A vida stressante de fazer sempre o mesmo e de esperar pelo aviso do Banco a informar que posso respirar um pouco mais fundo, porque foi adicionada à minha conta, mais uma mensalidade da reforma. Cáspite…! A partir daqui, as coisas mudam de figura, devagarinho, para não entrar em déficites excessivos. E, ao ler esta crónica de alegria contagiante, verifiquei por várias vezes, que me agitava na cadeira, ao ritmo de uma marcha lisboeta. Não sei se da Mouraria ou se da Bica. Talvez, até fosse a da Graça, onde tantas vezes fui, por ter mais espaço. E agora ? Agora, vou ter que esperar pelo S. João, se é que quero deixar-me de velharias, porque, como se diz, Velhos são os Trapos…! E por aqui me fico, com o S.João…!

    Oh ! Meu querido S. João
    Como queres ser o primeiro
    Se tens apenas o teu bordão
    E a tua pele de cordeiro ?

    Ah…! Mas lá no Porto
    O caso muda de figura
    Pode andar tudo torto
    Mas a festa é sempre dura…!

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