Testemunho de um Afundamento

Num pequeno livro de contos que publiquei há poucos anos, a que chamei “Garcia de Resende Tinha Razão”, incluí um pequeno conto verdadeiro designado por “Testemunho de um Afundamento” (2ª Guerra Mundial), página 44 do citado livro. Era um caso passado em 1941, com uma testemunha ainda viva, e que terminava onde as minhas investigações me tinham permitido chegar. Deixei em aberto factos relevantes, a que fiz referência, mas para os quais não dispunha, nessa altura, dos meios necessários.
Algum tempo passado, as coincidências da vida trouxeram-me os elementos em falta. Senti a necessidade de completar o conto, mas não se justifica uma segunda edição do livrito, cuja expansão foi, aliás, muito limitada.
Resolvi, então, incluir um novo texto neste meu blogue para, contando tudo o que agora sei, fazer justiça a dois protagonistas essenciais: a testemunha ainda viva desse afundamento e o oficial alemão que comandou o afundamento (como poderão verificar na história).
Aqui poderão ler uma parte abreviada do conto a que me refiro (expurgado de adornos literários…), onde só mantenho as partes essenciais para o bom entendimento da situação. O livro completo estará sempre à vossa disposição (bastará pedi-lo). Vou transcrever o resumo desse conto.

As histórias de Marinha sempre foram palpitantes e envolveram algo de mágico…
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A testemunha do incidente que vamos relatar, nossa conhecida, tem hoje 96 anos e lembra-se, com pormenores, da aventura que viveu em 1941, depois de ter embarcado no navio de carga “Corte Real” que a levaria, com a sua filha de um ano, até aos Açores, onde passaria a residir…..
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O navio mercante “Corte Real” com funções mistas de carga e passageiros largou da barra do Douro às 18 horas do dia 11 de outubro de 1941 com plano de viagem para o Funchal, Nova Iorque e Açores. O navio era comandado pelo capitão da Marinha Mercante José Marques Junior e deslocava-se devidamente identificado com uma enorme bandeira portuguesa e a palavra Portugal escrita no casco do navio, em ambos os bordos.
No dia seguinte de manhã o navio foi sobrevoado por um avião alemão que desapareceu e ao qual ninguém prestou especial atenção. No entanto, cerca das 11:45 h, foi avistado, à superfície, um submarino alemão que, sem aviso prévio, disparou dois tiros de canhão para as proximidades do navio.
Através de sinais de bandeiras o submarino avisou que queria ver os documentos de carga do navio português. Para tal, o imediato do navio dirigiu-se, a bordo de um escaler, até ao submarino onde toda a documentação foi revistada. Ao fim de quase duas horas o comandante do submarino, Hans Werner Kraus, informou que entre as 700 toneladas a bordo havia um importante carregamento de relógios suiços para os Estados Unidos mas com destino final no Canadá. Como este país era beligerante contra a Alemanha, o navio tinha que ser afundado. As conversações foram longas mas sem êxito….
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Deu meia hora para que todos os tripulantes e civis a bordo do navio fossem embarcados em escaleres para que o “Corte Real” pudesse ser afundado.
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Assim foi. Todos os tripulantes foram embarcados em baleeiras que, embora pequenas, conseguiram abrigar todas as pessoas. A pedido expresso do Comandante Marques Junior as duas senhoras (uma delas a nossa amiga testemunha dos factos) e as suas filhas foram embarcadas no submarino onde lhes cederam cobertores e alimento para os quatro… A seguir foi a fase do afundamento. Dois torpedos resolveram o problema em meia hora…..
……
Após esta operação o Comandante Marques Junior pediu ao comandante alemão que rebocasse a baleeira e o bote até perto da costa portuguesa. Assim fizeram…
… Às 60 milhas da costa portuguesa as senhoras e as crianças regressaram às baleeiras com agasalhos e comida para todos os tripulantes. Foi ainda cedida uma pistola de sinais luminosos e instruções para poderem remar na direção correta. Avisaram também as autoridades alemãs que, a seguir, informaram as autoridades portuguesas.
……………………

A senhora que nos fez este relato, passados tantos anos, não esconde a emoção vivida e o medo que terá sentido. Mas o que ninguém esqueceu foi o desempenho e a atitude do comandante do submarino que soube, apesar do ato de guerra, salvaguardar a ética militar que lhe terão ensinado na sua Escola.
Não sabemos o que terá sido o futuro militar deste comandante mas a sobrevivente deste incidente, do alto dos seus 96 anos, acha que ele só poderá ter sido feliz.

A partir daqui passo à realidade atual. Um Amigo meu, distinto oficial da Armada, depois de ter tido a amabilidade de ler o meu tal livro de contos ficou, naturalmente, desperto para o caso do afundamento.
E foi dele que recebi um telefonema contando-me da sua amizade, desde há anos e durante a sua carreira militar, com um oficial alemão com quem tinha convivido com alguma intimidade. Perguntou-me se me importava que, através desse oficial, tentasse encontrar informações do comandante do submarino, protagonista da nossa história. Disse-lhe que estava completamente de acordo e desejei-lhe boa sorte.
Esse oficial alemão, Capt. Franz Koehler, depois de averiguações diversas, enviou ao meu amigo, um e-mail que ele que recebeu não há muitos dias e se apressou a transmitir-me. Aqui vai o texto desse e-mail, nas partes que interessam à nossa narrativa:

Bom Amigo
Recebi o teu livrinho de contos, em português, que consegui entender perfeitamente. Não foram em vão os anos passados em Portugal com a minha mulher Brigitte (como te lembras, o pai dela era oficial engenheiro de submarinos).
Ficámos muito agradados pelo comportamento do comandante do submarino alemão.
Fiz uma mensagem para um dos meus cadetes, ao tempo, que se tornou, entretanto, historiador naval, perguntando-lhe se conseguia saber detalhes sobre o Ten. Kraus.
E acabo de receber essa informação. Está registado que Kraus foi criticado por rebocar as baleeiras e ter abrigado os náufragos a bordo do seu navio, estando em ato de guerra contra um combóio inimigo.
No entanto, foi bem sucedido como comandante de submarinos e foi condecorado, mais tarde, com a “Cruz de Cavaleiro”. O seu submarino era o U83.
Não continuou na Marinha e dedicou-se ao comércio, tendo morrido a 25 de Maio de 1990.
Um grande abraço do Franz.

Aqui fica concluido o conto iniciado há uns anos. A notícia será transmitida à ainda viva sobrevivente (agora com 98 anos) e com mais uma manifestação de simpatia pelo oficial Werner Kraus que, em situação difícil, soube interpretar os padrões de ética militar tantas vezes ignorados.

4 pensamentos sobre “Testemunho de um Afundamento

  1. Final do conto, cujo início como sabes já tinha lido, muito interessante. Por estas e por outros é que continuo a ter fé na Humanidade : em todas as circunstâncias encontra-se sempre pessoas que não se esqueceram de que são seres humanos 1
    Abraço
    F.

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  2. Interessantíssimo episódio de uma cena de guerra, onde a ética, a disciplina e o humanismo se confundem, num ambiente de brutalidade. Sou um apaixonado pela leitura de contos de guerra. Não, por sentir qualquer emoção anormal de sentimentos, mas para manter ao de cimo a imagem e a abnegação de quantos sofreram os horrores do ferro e do fogo, tantas vezes, injustificadamente esquecidos pelas populações beneficiadas dos seus esforços…! Vou procurar este livro, e vou reler todo este episódio…!

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