Glosando também o tema da liberdade, que foi abordado pelo nosso companheiro de blog Rui Frias – tema que é preciso acarinhar e zelar com muito cuidado para que não venhamos a falar dele com a saudade dum bem que se perdeu – vou contar o que fiz quando pela primeira vez estive “ao ar livre”, no sentido figurado da expressão.
Aconteceu em 1958, eu à beira de fazer 21 anos (ainda de menor idade segundo a legislação do tempo). E dessa experiência vou referir alguns episódios que me ficaram na memória como os mais interessantes de contar
Nesse ano, entre as cadeiras do 4º ano do IST que completei estava incluída a Química Orgânica. Na altura a cadeira era dada por um professor de nacionalidade francesa, M. Pierre Laurent. Este conhecia muita gente em França, nomeadamente directores de fábricas da indústria química e portanto tinha facilidade em conseguir estágios escolares (curriculares) para os seus alunos. Concorri e foi-me atribuído um estágio na fábrica de ácido sulfúrico que a companhia Saint-Gobain tinha em Bordéus.
Como nesse ano a viagem de curso dos finalistas de Engenharia Civil era à Bélgica para assistir a um congresso europeu de alunos de engenharia e para visitar a Exposição Universal Internacional de Bruxelas, aproveitei a boleia organizativa e lá fui. A viagem para Paris (1ª etapa) foi no Sud Expresso e comigo foram também alguns colegas do meu curso.
Antes de continuar, convém referir que politicamente a “malta” do Técnico era contra o Governo do Sr. Oliveira Salazar, activa ou passivamente, ou indiferente. Não conheci nenhum colega que fosse apoiante do governo de então. Lembro que 2 ou 3 anos antes tinha havido a luta contra o D/L 40900, que pretendia “domesticar” as Associações de Estudantes ainda existentes, o que uniu a comunidade estudantil e que originou um recuo ( derrota ) do Ministério da Educação Nacional (o texto do D/L foi enviado para a então Câmara Corporativa e lá apodreceu).
Portanto ao desembarcar na Gare de Austerlitz, as minhas primeiras actividades, ainda na estação, aproveitando o “ar livre”, foram : comprar uma Coca-Cola e um exemplar do L´Humanité, o diário do Partido Comunista Francês, ambos proibidos em Portugal pelo referido governo do Sr. Salazar. Confesso que fiquei um pouco desapontado: nem a Coca- Cola era bebida que valesse o esforço de a comprar ( ainda hoje é raro bebê-la ) nem o L’Humanité tinha uma leitura que me prendesse.
Da estação seguimos para uma enorme residência de estudantes, desocupada por serem as férias de verão. À noite fui com um grupo a um dos mais famosos caveaux da época, o “Caveau de la Huchette” onde actuava o não menos famoso Sidney Bechet. Foi uma noite bem passada, numa sala a imitar uma caverna e com boa música. À saída puseram-nos um carimbo na mão, dizendo que enquanto carimbo fosse visível poderíamos voltar sem ter de pagar a entrada.
Em Bruxelas, onde ficamos também numa residência de estudantes ( eu fiquei menos dias pois tinha de me apresentar em Bordéus pra dar início ao estágio ) dividi o meu tempo pelo Congresso e pela Exposição. Do Congresso pouco me lembro, mas da Exposição ficaram-me na lembrança :
- o pavilhão da URSS onde estava em exposição o 1º Sputnik (lançado no ano anterior e que representava uma grande conquista tecnológica);
- o pavilhão dos EUA onde pela primeira vez vi televisão a cores;
- o pavilhão de Portugal, onde o restaurante era famoso por receber lagosta lusitana todos os dias (ou quase) por intermédio dos voos da TAP para Bruxelas, e onde encontrei um tipo da minha idade, relativamente famoso em Algés pela vida folgada que levava mas que ali trabalhava como empregado de mesa;
- e a noite em que um colega de Civil, dos que faziam a viagem de curso, subiu para um pedestal na “Belgique Joyeuse “, o local de diversões da Exposição, e começou a arengar às massas, em francês, sobre as viagens dos navegadores portugueses na época dos Descobrimentos e que rematou assim (vou ver se ainda me lembro das palavras) “ … et savez vous quelle a eté la vraie raison de ces voyages ? Toujours la même : cherchez la femme !!! “ .
E hoje, fico por aqui. Na próxima vez, que será em breve, falarei do que aconteceu em Bordéus.
O PROGRAMA SEGUE DENTRO DE MOMENTOS – lembram-se ?
Cherchez la femme…! Bien sûr ! Adorei o texto, e fiquei curioso pelo final da viagem, mesmo que respingado com ácido sulfúrico Bordeaux, rouge ou blanc …!
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Muito bom. Também vivi esses momentos da Exposição de Bruxelas coincidindo com a minha viagem de guarda-marinha. Aguardamos o resto da aventura.
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