Desde há muitos anos, desde a adolescência (no século passado, imagine-se…), que ganhei o hábito de, na época de Natal, por esta altura e sem definição precisa do dia, dar um passeio pela baixa e por algumas ruas de Lisboa. Sozinho, de mãos nos bolsos, sem pretender comprar nada, mas apenas para ver, ver os ambientes, ver caras de pessoas e imaginar o que lhes poderá ir na alma, ver as luzes e os escuros, tentar adivinhar as felicidades e as infelicidades. Depois desses passeios, recolhia-me e pensava. Como ainda hoje me recolho e penso. Porque ainda faço esses passeios. Sem destino, é verdade, sem nenhuma obrigação, mas acho que a alma, apesar de tudo, faz um “rewind” de uma gravação que me permite fazer comparações. Sem constrangimentos, sem influências, o que só é possível se o fizer sozinho.
Lembro-me, há anos, de, nesses passeios e noutras situações ocasionais, mais ou menos parecidas, encontrar muita gente conhecida. Era o “olá, como está?” ou “como vai isso, há que tempos!…”. Não é o que se passa hoje. Nesses passeios e nos outros acidentais , a maior parte das vezes, não vejo ninguém conhecido. A população aumentou, mudou, rejuvenesceu-se e os que, da minha época, ainda têm paciência para sair estão, claro, mais rarefeitos e dispersos.
No passeio passo por gente com pressa, correndo de loja para loja, com embrulhos coloridos, com os olhos postos na meia distância, tropeçando, de quando em vez, em coisas que as incomodam mas que não sabem o que são. Há quem esteja parado numa esquina, olhando para todo aquele atropelo sem o mínimo de emoção. Também é normal. E há os que estão sentados no chão, de mão estendida, balbuciando angústias que ninguém ouve para poderem receber uns magros trocos que lhes permitam fazer não sei bem o quê. Às vezes entra-se no café do costume e bebe-se o mesmo café de sempre. Os empregados são outros , a rapidez é a mesma. Nas livrarias onde habitualmente se passa, olho para a multidão de títulos em exposição. O que nos poderia levar a concluir que se lê cada vez mais. Mas, segundo os entendidos, não é assim. As edições são pequenas e só uma dúzia de escritores famosos e respetivos editores conseguem ganhar dinheiro. Os amantes de livros distinguem-se à distância. Estão sozinhos no meio das prateleiras, com ar normalmente macambúzio, chegando ao balcão do caixa com um braçado de livros a pagar. Se espreitarmos, vemos que são livros especializados ou romances de autores famosos alguns deles na versão e língua originais. São ou foram professores disto ou daquilo e, agora, na reforma, como eu, deleitam-se com as leituras preferidas antes de adormecerem nos sofás.
Mas, se no tal passeio, entrarmos no metro, ficamos a perceber rapidamente porque não se lê tantos livros como pensamos. A maior parte dos passageiros estão a olhar, esgazeados, para aqueles maravilhosos aparelhinhos que lhes dão músicas ensurdecedoras e lhes permitem dizer ao amigo que vão no metro para casa. Às vezes o amigo vai no mesmo metro e eles trocam impressões constantemente. Com tanta informação instantânea não se consegue ler…
Depois do passeio, sentado, tento fazer comparações com os passeios dos anos anteriores. Nada de muito diferente a não ser o meu cada vez mais óbvio anonimato. Também leio o que tenho procurado ou o que me vem ter às mãos. Oiço, em fundo, através do YouTube (onde eu já cheguei!…) os momentos de música clássica ao som dos quais gosto de ser embalado. E, de repente, o meu telefone dá um pequeno toque (também uso o tal telefone). É um amigo a cumprimentar-me pela época. Retribuo logo, falo com ele se possível e recrimino-me por não me ter antecipado. Corro para a minha lista de contactos para desejar também as Boas Festas a alguns deles, aos amigos. E vou-me lembrando deles. Dos que são sempre amigos. Mesmo que não falemos com frequência, sabemos que eles estão lá; dos que nos lembramos naquela altura e guardamos a “espontaneidade” para outra altura, e dos que encontramos os nomes mas que, infelizmente, já morreram. Até hoje nunca consegui apagar um desses nomes da minha lista. Para mim, eles vivem sempre, lembro-me deles e dos tempos que passámos juntos, não os apago. Doeu-me tanto a ausência de alguns deles que, mantê-los na lista é uma homenagem que lhes presto e um alívio da minha consciência.
Curioso como me lembro de toda a gente, principalmente depois do passeio, o que me traz, como se compreende, algum clima de nostalgia. Mas, de repente, despertam-me e chamam-me para conhecer a minha opinião sobre isto ou aquilo. E quem me chama é quem verdadeiramente interessa nestes meus devaneios. São todos aqueles que vão viver, transformar e melhorar o mundo que lhes deixo, que lhes deixamos. E aí não há nostalgia que sobreviva. As tais músicas e cantores de que não sei os nomes, as piadas brejeiras de que sou alvo, os olhares condescendentes que me dedicam dizem-me que valeu a pena fazer o tal e o mesmo Passeio de Natal para, ao comparar, poder dizer que o mundo não está pior, pelo contrário, vai melhorar, e a “culpa” é de toda essa “gente” que me desperta das minhas cogitações e me diz: “Venha ver os Bolos! Feliz Natal!”
BOAS FESTAS PARA TODOS OS MEUS AMIGOS E SEGUIDORES DESTE NOSSO BLOGUE!
Interessantíssimo este assunto ! Revejo-me nele, em tantas as vezes que atravessei aquelas ruas, de passeios de empedrado polido, tantos os passos das pessoas que procuravam a felicidade de ver gente bonita. Possivelmente, estarei a ficar ultrapassado, tropeçando nos meus pensamentos, de um mundo que já quase me custa relembrar se realmente existiu. Talvez tenha existido, naquilo que apenas gostava de ver. Entrar na Bertrand e sentir o cheiro de livros novos, escolher uma gravata na Picadily, comprar uma lata de tabaco Revelation, na Havaneza e beber um café de saco no Nicola, que posteriormente troquei pela bica da Tofa, na rua do Ouro. Do que me havia de lembrar…!
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Partilho a tua nostalgia. A Baixa e o Chiado continuam a ser os meus lugares preferidos de Lisboa. E ainda tenho paciência de ir a uma loja na Praça da Figueira e ficar um ror de tempo na fila para comprar frutos secos a peso. Nesta altura do ano a freguesia é mais que muita, nem que seja para comprar 100 g de pinhões descascados. Como sou do teu tempo, levo um livro para ler. Mas também gosto de observar as pessoas e imaginar histórias a seu respeito
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