Os “coletes amarelos” em França, e o “Maio de 68”

Depois de longos meses ausente deste blogue por razões pessoais muito ocupantes, regresso com todo o gosto a este convívio muito estimulante.

Durante este longo interregno deixei incompletos alguns escritos que perderam naturalmente atualidade. Porém, face ao que se passa atualmente em França, recuperei alguns dados escritos a propósito do 50º aniversário do “maio de 68”, numa tentativa de procurar entender o que hoje se está passando na sociedade francesa à luz das “lessons learnt” em 1968.

Como é conhecido, no final de 2018 surgiu em França este movimento novo, autodenominado “coletes amarelos”. Ao contrário do que aconteceu em maio de 1968, em que o Le Monde publicou na sua edição de 15mar68 um artigo premonitório sob o título «Quand la France s’ennuie …», reconhecendo a existência de algum mal estar na sociedade francesa de então, nos tempos atuais ninguém previu o aparecimento deste grande movimento de contestação. É «A França amarela que ninguém viu chegar» como titulava com propriedade o El País na sua edição de 25nov2018.

Os “coletes amarelos” são cidadãos franceses de todas as idades e classes sociais, uma grande parte com residência na França rural. Mobilizam-se através das redes sociais para todos os sábados se reunirem nas rotundas de entrada das cidades, e depois iniciarem desfiles e manifestações até aos locais selecionados. Não têm qualquer ligação orgânica a sindicatos, a partidos politicos ou a outros movimentos sociais. A razão que despoletou esta grande contestação popular ainda em movimento, foi a subida do preço dos combustíveis decidida pelo presidente Macron.

Recordando o “maio de 68“, também tudo começou por um motivo aparentemente pouco relevante, como foi o protesto de muitos estudantes da universidade de Nanterre contra a proibição de receberem colegas do sexo oposto nas suas residências universitárias. Nasceu assim o “movimento de 22 de março” que tinha como um dos seus mais conhecidos slogans, «é proibido proibir». Um dos seus principais ativistas foi o então estudante Daniel Cohn Bendit que, por ter interpelado grosseiramente um ministro do governo francês em visita à sua Escola, foi detido em 27abr18. Chamada a Policia pelo reitor, a universidade foi evacuada pela força, o mesmo acontecendo com a Sorbonne no dia seguinte. Dias depois (06maio) cerca de 30.000 estudantes desfilaram em Paris até ao Arco do Triunfo, onde junto à chama no túmulo do Soldado Desconhecido cantaram a “Internacional”. Nessa noite houve já barricadas no Quartier Latin com confrontos violentos de que resultaram feridos 345 polícias e 600 estudantes. A situação agravou-se seriamente em 13maio quando os sindicatos franceses decidiram aderir à revolta estudantil, apelando adicionalmente a uma greve geral. Nesse dia cerca de 200.000 manifestantes desfilaram em Paris com um enorme cartaz dizendo «estudantes, professores, trabalhadores, solidários»; era toda a França que se manifestava contra De Gaulle e a sua política. Uma semana depois (20mai68), teve início a maior greve de sempre em França, estimando-se em cerca de 10 milhões o numero de aderentes.

O “maio de 68” durou aproximadamente seis semanas, sendo o período de 20 a 26 de maio particularmente violento, em especial a noite de 24/25 em que, entre muitos feridos graves, morreu em Lyon um comissário de polícia atropelado por uma viatura de manifestantes . Tudo terminou em 30mai68 com a dissolução do Parlamento e o anuncio de eleições legislativas para junho. Em 11 de junho ainda houve um jovem morto por um bala perdida. O balanço final dos confrontos foi, além dos 2 mortos atrás mencionados, cerca de 2.400 feridos atendidos nos hospitais, dos quais 1300 polícias. Em 10jul68 tomou posse um novo governo francês (M Couve de Murville), e o general de Gaulle renunciou à PR francesa em abril de 1969.

A primeira manifestação dos “coletes amarelos” ocorreu em França em 17nov2018 com a participação de cerca de 280.000 manifestantes em dezenas de locais, particularmente em cidades importantes (Paris, Toulouse, Lille, Marselha, Lyon e outras). Desse dia há registo de 2.039 ações de grande violência, com pilhagens de lojas e outros atos de vandalismo sobre viaturas e mobiliário urbano e, naturalmente, com muitos confrontos com a policia. Estas concentrações, desde o início referidas como “Actos“, cada uma identificada sequencialmente em numeração romana, são seguidas de desfiles, e terminam sempre com grande violência, incluindo tentativas de entrada em edifícios ministeriais e na Assembleia Nacional Francesa. Têm-se repetido todos os sábados, sem fim à vista. A última, Acto XIII, aconteceu em em 09fev com menor números de participantes mas com muita violência.

Até hoje, os confrontos entre a polícia e os “coletes amarelos” já causaram 10 mortos e um número muito elevado de feridos; destes, conhecem-se hoje apenas os referentes ao “Acto I” (17nov2018), e que são de 528 feridos, dos quais 17 em estado grave. Desde essa data, as autoridades francesas deixaram de indicar a quantidade de feridos em cada dia e manifestação. Ao contrário do ocorrido no “maio de 68”, em que a polícia procurou, desde cedo, estabelecer pontes de diálogo com os manifestantes, hoje tem principalmente reagido pela força, utilizando novas granadas de gás lacrimogénio, mas que contêm algum explosivo TNT, e principalmente lançadores de balas de borracha que têm causado muitos feridos graves entre os manifestantes. Em consequência o Acto XII (02fev2019) foi dedicado a homenagear os feridos nesses confrontos.

Em “maio de 68” os manifestantes e a polícia cedo iniciaram o diálogo. Não há notícia de os “coletes amarelos” e a polícia terem, até agora, procurado estabelecer qualquer contacto. É hoje conhecido, que a partir da grande manifestação de 13mai68 em Paris, os vários quadrantes envolvidos tinham constituído serviços de ordem próprios para impedirem excessos. E quando um número expressivo de radicais reclamou, então, que se ocupasse o Eliseu, foi o próprio Cohn Bendit que a isso se opôs decididamente, propondo antes a abertura de negociações no Campo de Marte a que as forças policiais logo aderiram. Cohn Bendit, nesses tempos um dos mais importantes líderes do movimento, é hoje deputado do partido Ecologista os Verdes no Parlamento Europeu, e muito crítico do que se está passando, comentou a propósito, que em Maio queriam retirar do poder O general, quando agora aqueles pretendem, antes, lá colocar Um.

No “maio de 68” o então prefeito da Polícia de Paris (Maurice Grimaud) teve uma enorme importância no baixar da pressão social existente. Por causa dos excessos iniciais no uso da força pela polícia, escreveu na altura uma carta pessoal a cada um dos “gardiens de la paix”. Nessa carta, significativamente endereçada para as suas residências privadas, recomendou prudência e contenção nos contactos com os manifestantes; mas ao mesmo tempo definiu linhas vermelhas que, se ultrapassadas implicavam atuação enérgica da polícia, como veio depois a acontecer com o desmantelamento das barricadas. Dos diálogos então havidos resultaram, também, resultados socialmente muito significativos, como foram os acordos de Grenelle onde nasceram novas ideias sobre a negociação social e a definição do salário mínimo.

A natureza dos “coletes amarelos” tem tido uma evolução significativa em todos os “Actos” até agora realizados; pelas novas e crescentes reivindicações apresentadas, pelo abandono de alguns dos envolvidos e pela radicalização de outros, principalmente pela reestruturação visível do movimento, agora já com exigências políticas. Hoje já se exige, além do fim da repressão policial, a demissão imediata do Presidente francês, e a realização de um “Referendo de Iniciativa do Cidadão” (RIC). Mais recentemente, até já é referida a constituição de listas próprias para as próximas eleições para o Parlamento Europeu !!!

Os “coletes amarelos” têm atualmente as características, e a dinâmica, do que é hoje conhecido, e estudado, sobre as “Revoluções Populares Híbridas” (RPH) hoje em curso em vários países. Como uma das suas características, têm uma marca icónica, o colete amarelo, que a generalidade da população possui. E são visíveis os objetivos que procuram atingir. Como a criação de um caos gerível segundo os seus interesses, mas visando o enfraquecimento dos regimes em vigor, que no limite pode levar à sua substituição.

Não é por acaso que Steve Bannon, o conhecido ex-conselheiro do presidente Trump, numa recente entrevista à revista l’Express , cita o exemplo da atuação dos “coletes amarelos” como “… a primeira vitória contra as elites e a globalização”. E acrescenta mesmo “… eles são uma inspiração para o mundo inteiro!”! Recorda-se que a personagem em causa esteve em março de 2018 como convidado de honra no “Congrés du Rassemblement Nacional” organizado pela senhora Le Pen!

Está complicado o mundo hoje!!!

José Aparicio, 15fev2019

3 pensamentos sobre “Os “coletes amarelos” em França, e o “Maio de 68”

  1. Na verdade fez 50 anos sobre Maio’68. Não é assim tanto tempo mas, é extraordinária a evolução da sociedade e a transformação que o mundo levou.
    O artigo está muito bem elaborado porque nos mostra isso mesmo. Os valores e os interesses alteraram-se e disso as redes sociais tiveram grande responsabilidade mas a evolução tecnológica foi fundamental.
    Vamos ver como vai acabar desta vez. Se acabar…

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  2. Uma crónica extraordinária e de um pormenor fascinante, que me fez recuar cinquenta anos. Apesar da situação em que o nosso país vivia, todos aqueles movimentos, não passaram despercebidos do público, que lia os vespertinos com interesse. E esse, também foi o meu caso, mais preocupado com a selvageria do que pelos motivos políticos. Selvageria, tão alheia aos interesses dos manifetantes. Seria até interessante lembrar o que se passava em França, antes de DeGaulle entrar para o poder, com os atentados contínuos, por uma Argélia livre, a Guerra da Indochina, com a derrota de Dien Bien Phu, a instabilidade política, a inflação galopante, ao ponto da moeda de Um Franco, ser cunhada em alumínio, em vez de um metal mais nobre, pelos custos serem superiores ao seu valor. ( Ainda hoje, guardo uma dessas moedas )…! E finalmente, a França, rejuvenecida, mais próspera, com uma evolução invejável, sob o ponto de vista económico e tecnológico, expandindo-se com os aviões Mirage, o Caravelle, o surpreendente Citroen 2CV, o Citroen Boca de Sapo, e continuamente a invadir-nos com ondas de turistas, sob o slogan Portugal Pink, numa nova época de paz que trouxe tanta prosperidade a toda a Europa. …!
    Quand la France s´ennuie, cést l´autre chose ! Un grand probleme…!

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