Nos tempos que correm, este texto pode ser interpretado como um desafio ultrajante aos novos caminhos da gastronomia e às purezas dos costumes. Felizmente que o artigo se baseia numa interessante dissertação de Stéphane Durand-Souffland que no seu jornal, Le Figaro, tem a coragem de relatar alguns hábitos retomados, por vezes abandonados ou esquecidos, da melhor gastronomia francesa. Esta coisa de convivermos com o veganismo, com o vegetarianismo e com outras escolas de purificação dos corpos e das almas, leva-nos quase a rejeitar muito boas coisas que comemos ao longo dos anos e que nos permitiram chegar às nossas idades. Nada tenho contra os novos hábitos, desde que eles não me excluam de algumas das minhas tradicionais preferências.
Devo dizer que nunca provei e nunca provarei esta famosa lebre “à la royale” cuja antiga tradição reside em França e por lá se tem mantido oculta até há relativamente pouco tempo. “Esquecida pela nova cozinha, este prato furiosamente retro impõe-se de novo nas mesas dos pequenos restaurantes “bistrot” até aos de 3 estrelas. Eis aqui como se confecciona este prato politicamente incorreto: mata-se, ao tiro, um animal inocente e, ainda por cima, muito simpático com as suas enormes orelhas; mergulha-se o corpo do defunto em litros de vinho tinto; enche-se-lhe o interior com “foie gras” e outras péssimas gorduras; acrescenta-se molhos feitos com alho, notoriamente indigestos, especiarias diversas, incluindo cacau, tudo importado do lado oposto do mundo com enorme pegada de carbono; o molho de cobertura, negro como uma mancha de petróleo retirada de um derrame, é encorpado com o sangue do animal abatido. Desculpem a descrição mas nada vos poderia identificar melhor com este ultrage gastronómico.
E, após tantos anos, este prato reganhou, em França, claro, uma incrível popularidade. Pela simples razão que a sua degustação é, aparentemente, uma experiência sensorial completa. E muita gente, franceses e de outros países (Portugal incluido) vão procurar os locais onde se possa apreciar tão requintado repasto. E nos 12 restaurantes, por toda a França, em que é servida esta experiência gustativa, os preços por dose variam entre os 42 e os 135 €. Claro que se forem, em Paris, ao restaurante do atual campeão na matéria, David Bizet, acabarão por pagar bastante mais, ainda por cima se for acompanhado, como deve, por uma garrafa de Calon Ségur , tinto, claro, e cujo preço não consegui apurar.
Mas não pensem que esta receita é moderna. Foi criada no tempo de Luis XIV para que pudesse comer sem mastigar (Sua Majestade não tinha dentes). As damas também se deixaram seduzir por tão nobre ementa. Colette, mãe de todas as batalhas culinárias, escreveu no seu livro “Prisons et Paradis” esta passagem vuluptuosa: “Qual de entre vós duvidará, ao saborear a autêntica lebre à la royalle, espessa e macia, quente na boca, que sessenta – sim, sessenta – variedades de alho cooperaram nessa perfeição? “
Consegui apurar que o animal deve ser cozido, primeiro, durante doze horas num forno a 85º, depois mais doze horas a 75º, posto a ferver num saco em vácuo, para repousar uma semana no frigorífico. Oh, meus amigos, isto, afinal, nem é caro! Por mim, que não sou amante de caça, nunca me passaria pela cabeça viver esta aventura (não falando, claro, no preço e no incómodo da viagem…). Continuo a apreciar o cozido à portuguesa, o bife à café, o velho bacalhau à qualquer maneira. É tudo mais prático, mais em conta e não deixo de olhar para os pratos dos meus companheiros de mesa para lhes admirar as ementas vegan, os bróculos saudáveis e, muitas vezes, o tão atual “sushi”. Já experimentei de tudo isso mas a “lebre à la royalle” suspeito que nunca irei provar. Basta-me a descrição!…
Em matéria de gostos culinários, sou um simples como o Manuel José. E como, por gentileza de destino, os meus dentes ainda são os de origem, não necessito ainda de recorrer a “lebres à la royale”
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A minha, cada vez maior, falta de apetite, sofreu um impulso de baixo para cima, igual ao volume de Lebre à la Royal, que por engano poderia ingerir…! Como, um reconfortante Cassoulet, ou um Coq au Vin, ou ainda de um Magret de Canard au Porto, acompanhado de um bom Beaujolais, em qualquer Relais do Quartier Latin, me faria bem ao espírito, suavizando estes dias de chuva e vento, que, invariavelmente, me prende em casa…! Hoje, com esta crónica simpática sobre, especialidades gastronómicas, fiquei sem qualquer dúvida, sobre os gostos esquisitos de Luis XIV, que como o nosso tão querido Rei D. João VI, costumava guardar um franguinho assado, na algibeira do seu casaco, penso que de veludo cheio de nódoas, para ir comendo aos poucos durante o dia…! Já agora, Un Café Gourmand, para finalizar…! Bon apetit !!!
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