DOIS PAPAS

Na vida e no mundo as coincidências são-no, enquanto tal, ou são rigorosa e disciplinadamente preparadas para parecerem coincidências. Já todos vivemos experiências de ambos os tipos e, portanto, ser-nos-á permitido refletir sobre a veracidade de muitas das coincidências que hoje assolam o mundo. O mundo dos homens que, não poucas vezes, se transfere para o mundo do espírito e torna tudo ainda mais complexo e discutível.

Recentemente ficou disponível, na inefável Netflix, um pequeno filme chamado “Dois Papas” que suscitou imensa curiosidade e foi visto por milhares de cidadãos entre nós e no mundo.  Em termos resumidos trata-se de um prolongado encontro entre o Papa Bento XVI (Cardeal Ratzinger) em pleno exercício do seu pontificado (magistralmente desempenhado por Anthony Hopkins) e o cardeal Bergoglio (também magistralmente desempenhado por Jonathan Pryce), encontro este já depois do conclave em que Ratzinger fora eleito Papa e em que Bergoglio fora o segundo mais votado.  Cardeais de idades diferentes e, sobretudo, de conceitos muito diferentes quanto às bases do apostolado. A empatia criada entre os dois homens parece ter sido grande considerando, fundamentalmente, a enorme diferença de opiniões quanto à forma de a Igreja se manifestar junto do mundo católico. O radicalismo conservador de Ratzinger foi sempre a pedra de toque para a relação  de abertura e solidariedade expressas por Bergoglio. Se naquele encontro se disse o que está no filme, não se sabe.  Não houve testemunhas. Poderá imaginar-se (como já o têm feito os especialistas desta área) que talvez o Papa já se sentisse cansado para enfrentar os imensos e graves problemas com que a Igreja se debatia. E daí tenha resolvido renunciar e promover a eleição, em sua vida, de outro Papa. Terá entendido que os tempos modernos exigiam também maior modernidade na ação, coisa para a qual não se sentia preparado mas  reconhecendo em Bergoglio essa natural disponibilidade, mesmo sem concordar com ele.  E do conclave saiu Bergoglio Papa, Papa Francisco. Remeteu-se à sua condição de Emérito, recolhido, silencioso e com enorme discrição.

Francisco tem sido o que todos já percebemos. Um Homem do mundo, conciliador, próximo dos que compõem o seu “rebanho”, despido de vaidades, não trocando os seus sapatos pretos argentinos pelos vermelhos papais a que teria direito. O crucifixo que traz ao peito é o que sempre o acompanhou e não o que a congregação vaticana lhe disponiblizou. Não ficou a viver nas instalações papais, preferindo alojar-se na vizinha Casa de Santa Marta, residência para bispos, sacerdotes e leigos, na qual ocupa o quarto 201. E dessa maneira tão hábil libertou-se (segundo dizem) do acompanhamento diário e vigilante do Secretário Geral do Vaticano, nomeado por Bento XVI nas vésperas da sua saída.

Para além das muitas viagens e mensagens que Francisco tem prodigalizado ao mundo católico teve lugar, a 26 de Outubro de 2019, um sínodo de cardeais (que passou a ser conhecido pelo Sínodo da Amazónia) em que dois terços dos seus elementos votaram favoravelmente o parágrafo 111 que dizia:  “Propomos que se estabeleçam critérios (…) para a ordenação de padres,  homens idóneos e reconhecidos pela comunidade, que tenham um diaconato permanente e fecundo (…) podendo ter uma família legalmente constituida e estável, para celebração de sacramentos, em locais mais remotos da região amazónica. Alguns dos presentes pronunciaram-se  a favor de uma aproximação universal deste tema”.

Ora aqui está o assunto que já tem tido longos e volumosos debates por todo o mundo clerical. Os não católicos pensam, naturalmente, de forma diferente dos católicos integrantes e sábios da Igreja. Mas, tanto quanto parece, o tema não pode ser ignorado nos tempos mais próximos. E não o podendo ser, eis que o discreto e silencioso Papa Emérito, do alto dos seus 92 anos e da sua reconhecida cultura pastoral, vem a público com um livro,  lançado pela editora Fayard,  no dia 15 de Janeiro passado, a que deu o título “Das Profundezas dos Nossos Corações”. Esse livro tem capítulos fundamentais de reflexão (cuja leitura deixo aos interessados) designadamente: “Não me posso calar”; “Uma missão exclusiva da Igreja”; “Uma abstinência ontológica” e “Renúncia a todos os compromissos”.  O livro foi escrito em parceria com o cardeal Sarah, da Guiné Conakry, recrutado para o Vaticano, em 2001, por João Paulo II e elevado à púrpura cardinalícia por Bento XVI, em 2010. Diz-se  que os dois homens nutrem uma enorme e recíproca amizade intelectual  e espiritual. É com a sua assinatura que surge no livro a seguinte frase:  “O celibato sacerdotal bem compreendido, se é por vezes uma prova, é uma libertação.  Permite ao padre  estabelecer com toda a coerência a sua identidade de esposo da Igreja”.

Escrito nesta altura, após o Sínodo da Amazónia, após tanto tempo de silêncio, este testemunho parece ser bem um “Aviso do Além” dirigido ao Papa Francisco. Mas também não se sabe se foi resposta subliminar ao livro,  a razão pela qual  Francisco nomeou a advogada italiana Francesca Di Giovanni, como Secretária de Estado do Vaticano para as Relações Internacionais. Embora Francesca já trabalhasse no Vaticano desde 1993 não é menos relevante que ocupe agora a mais alta posição de uma mulher na hierarquia da Santa Sé.

Repesco aqui o comentário de um meu familiar muito próximo ao dizer:  “Piano, piano, se va lontano”. Coincidências, claro que as há, mas estas fazem-nos pensar.

 

 

 

 

 

 

 

 

Um pensamento sobre “DOIS PAPAS

  1. O celibato dos padres é o grande tema de discussão na Igreja Católica, Seguir-se-á certamente a ordenação de Mulheres . Os Protestantes há muito que tomaram decisões sobre os 2 tremas. Entre os Ortodoxos, os padres podem casar, mas neste caso não poderão chegar a bispos

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