DEMOLIÇÃO OU RESTAURO?

O mundo e os países passam por crises incontáveis: humanitárias, sanitárias, ecológicas, financeiras, bélicas, políticas, institucionais, educacionais, comportamentais, enfim, a dificuldade será escolher prioritariamente uma delas  para serem desencadeadas as ações globais de que todas elas carecem e, indiscutivelmente, merecem.

Por tudo isto,  outras enormes crises, talvez com menor visibilidade ou sensibilidade populares, acabam por ser relegadas para planos secundários e menosprezadas em termos de apreço institucional. Não sendo a única, nem talvez a mais premente, a crise nas Artes e nas Infraestruturas  Artísticas tornaram-se claramente um sintoma de desmazelo e de amargo desleixo para muitos países e/ou cidades. Não me refiro, para já, ao caso português mas, mais adiante, lá chegaremos.

Muitos países  têm vindo a debater-se com os seus patrimónios artísticos, grande parte deles acumulando já centenas de anos de vida, de uso, de depreciação, de mudança de gostos , de hábitos e, quantas vezes, de proprietários que desaparecem sem acautelar o futuro desses espaços. E as cidades, as vilas, os países ressentem-se desse progressivo abandono. Perdem-se, em muitos casos, reservas arquitetónicas de irrecuperável valor e prescinde-se das suas utilizações, grande parte das vezes destinadas a manifestações artísticas que se antiquaram ou desapareceram. Mas desaparecem sem que se tenha produzido qualquer recuperação ou modernização desses espaços,  e os ambientes culturais vão padecendo desses males. Claro que todos sabemos que as grandes salas de cinema, por exemplo, deixaram de ser interessantes em termos de exploração e foram abundantemente substituidas por pequenas salas-estúdio, encafuadas em centros comerciais, onde toda a gente, em todo o mundo, passou a deslocar-se. Compram pipocas (o grande negócio dessas salas) e vão ver os filmes. E quem comanda esses “condomínios” cinematográficos são os grandes grupos empresariais que se espalham pelo mundo a vender pipocas e Coca-Cola  e a dar, como brinde, a exibição de um filme.

Os países têm vindo a refletir sobre esta depradação da cultura mas, havemos de reconhecer, que não são muitos nem fáceis os meios para recuperar a antiga tradição de ir a um espetáculo pela simples paixão de o ver, num ambiente quase solene, mas criado exatamente para esse efeito. Sobram, tanto quanto me ocorre, as salas de concerto e as salas de ópera. O resto são enormes pavilhões reservados para os incontáveis concertos de música moderna que, tendo, evidentemente, o seu lugar, lideram os poletões de espectadores que compram bilhetes, muitas vezes, com mais de um ano de antecedência. Tudo bem, nada a dizer. Falemos do que aqui nos traz hoje.

O Reino Unido que, a despeito do seu já consagrado Brexit, atende e estuda com cuidado todo o seu património artístico, concluiu que deveria haver uma mudança de atitude quanto à preservação de dúzias de instituições que, pela sua antiguidade e depradação, poderiam estar condenadas à demolição. O “Registo Anual de Teatros em Risco” listou cerca de 30 edifícios por todo o Reino Unido (Inglaterra, Escócia e Gales) que mereceriam ser recuperados e não demolidos, atualizando-se, eventualmente, as suas ocupações, de modo a preservar o património com valor artístico e, simultaneamente, a facultar espaços de cultura que, em todos os países, são sempre escassos. O caso do Burnley Empire, em Burnley, claro, é um bom exemplo dessa atitude. Inaugurado em 1894, fechou em 1955, depois de passar alguns anos a ser utilizado como sala de bingo! Em dezembro de 2018 o Teatro foi comprado ao Ducado de Lancaster e iniciou-se uma grande recuperação para que possa vir a albergar, de novo, teatro de qualidade. Outros casos em Inglaterra seguem, felizmente, o mesmo caminho. O Bradford Odeon, inaugurado em 1930, reabrirá em 2020/2021 e estima-se a presença de cerca de 300.000 espectadores por ano, com mais de 200 eventos já programados. O certo é que dos 176 teatros que faziam parte da lista em 2006, 78 já foram recuperados e inaugurados, e não demolidos.

E entre nós, o que se passa? Nos últimos  anos a área da Cultura conseguiu recuperar diversas salas de espectáculo ao longo do país, sobretudo em cidades onde o património  é rico e essencial para as suas visibilidades e acolhimento de muitos actos culturais. Falta fazer ainda muito, claro, mas os indícios, pelas poucas estatísticas que estão disponíveis sobre este tema, são animadores. Ainda há cidades sem um único cinema (conheço uma delas) mas isso também se deve às debilidades autárquicas que não consagram à cultura os poucos “por centos” que o próprio Estado destapa.

Para falar de Lisboa, que conheço melhor, ocorrem-me salas que resistiram ao camartelo imobiliário nas últimas décadas e que prestam bom serviços às Artes: Teatro D. Maria II, Teatro São Luis, Teatro Trindade, Teatro Politeama, Coliseu dos Recreios; outros que, continuando a existir, enfrentam permanentes dificuldades,  embora com alguns resultados: Cinemas S. Jorge e Tivoli, Teatro Capitólio (recentemente recuperado); outros que viram as suas atividades profundamente alteradas: Cinema Império (hoje sala de culto), Cinema Roma (hoje areópago municipal), Teatro Maria Matos (em constantes convulsões). Cinema Eden (agora como apartotel) e muitos, muitos outros que apenas constam nos catálogos históricos da cidade (Chiado Terrace, Star, Londres, Imperial, Estudio 444, Apolo 70, Lys, Avis, Europa., Quarteto, etc.). Não aumentemos a lista para que as novas gerações não se admirem com um passado tão recente. Claro que, e ainda bem, se construiram novas e belas salas de espetáculo em Lisboa e outras cidades mas o património classificativo de épocas diferentes, com raras excepções,  desapareceu.

Não sendo este o único problema dos responsáveis pela Cultura, não deixa, julgo, de ser um excelente motivo de reflexão. Os “por centos” para a Cultura são escassos e sem ovos não se fazem omeletes… Mas o património talvez merecesse uma atenção. Em Inglaterra acharam que sim.

 

 

 

 

Um pensamento sobre “DEMOLIÇÃO OU RESTAURO?

  1. Como eram diferentes, as salas de espectáculo, sempre a evoluir no conforto e na tecnologia do som e da imagem. Autênticos monumentos, à escala de grandes figuras do cinema, que nos levava a correr às estreias e a grandes temas de conversa…! Também, há muitos anos, que vou recordando, o que eram as estas salas da capital e dos grandes centros urbanos, como a cidade do Porto. Também, nas cidades do interior, hoje, tristes monumentos de um passado em desuso, algumas fechadas com vidros partidos…! Talvez, um ou outro teatro, ainda dinamizado pela boa vontade de algumas autarquias ou grupos culturais, que vão mantendo as portas abertas, a muito custo e com muita força de vontade…!

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