Nos tempos que correm parece que nos começamos a habituar a viver em confinamento, em solidão. Mas não se pense que isto é coisa nova. Desde há muito tempo que gente de bem, das melhores famílias, apreciava esta solidão, a espiritualidade da clausura. No meio das leituras que tenho feito caiu-me nas mãos um interessante artigo de Jacques de Saint Victor com o título aliciante de “As alegrias da Clausura” que, no fundo, se baseia no livro “Viagem à Volta do Meu Quarto” da autoria do francês Xavier de Maistre , cidadão rico, burguês, indolente, preguiçoso, amante da boa vida que viveu no século XVIII. Xavier era o irmão mais novo do conde Joseph de Maistre , um dos grandes teóricos da revolução. Mas Xavier era diferente, era indolente e apreciava, sobretudo, a despreocupação que até àquela altura se vivia. A revolução pôs fim a todas essas ligeirezas da vida pensando, no entanto, Xavier, que tudo voltaria a ser como era antes. Mas não. Como agora, nada será como dantes. Por isso resolveu viajar por toda a Europa, isolando-se finalmente na Rússia onde acabou os seus dias. Basta olhar para uma gravura da época para se perceber a “pinta do artista”. O ar indolente de quem, já em 1795, apreciava a boa vida, vivia de rendimentos e foi capaz de escrever o livro “Viagem à Volta do Meu Quarto” que
é, nos dias de hoje, um breviário ideal para tempos de confinamento. Apesar deste temperamento sedentário e desinteressado Xavier não era inculto nem incapaz. E ao escrever o livro de que falamos (escreveu outros sem sucesso) definiu o seu quarto como “o abrigo para os ciumes inquietos dos homens, tornando-se independente da sorte e da fortuna”. Baseando a sua escrita no humor britânico de Stern e na melancolia de Ovídio, ele leva-nos na sua viagem pelo quarto como uma enorme diversão espiritual. E acrescenta que essa viagem nada lhe custou, o que não lhe deve ter sido dispiciendo, mesmo para quem tem bens de base. Mas que, com o tempo e com as revoluções, se extinguem. Para ele “o quarto é um refúgio delicioso que encerra todos os bens e todas as riquezas do mundo. Ali está-se ao abrigo dos ladrões, não se encontram precipícios nem fronteiras. Exalta, claro, a sua biblioteca, o busto do seu pai e alguns objetos essenciais. Tudo o resto lhe é supérfluo.”
Este texto não tem, evidentemente, a intenção de fazer a apologia do isolamento, da solidão, mas não deixa de vir a propósito quando somos obrigados a descobrir as coisas que na nossa casa (no quarto do Xavier…) nos são verdadeiramente importantes ou interessantes e de que talvez já não lembrássemos ou não lhes dávamos o valor que, afinal, agora redescobrimos. Tem ainda a vantagem de nos fazer lembrar que estamos a cumprir uma missão essencial para a sociedade de que fazemos parte, que estamos a tornar menos duras as missões de quem, lá por fora, ainda tem que se mexer para que possamos estar isolados. Chama-se a isso solidariedade, bem diferente do sentimento egoista e egocêntrico de Xavier de Maistre. Os tempos de hoje convocam-nos para uma reclusão, uma “viagem pelo nosso quarto”, que faz parte da missão que nos foi atribuida. Os militares entendem isto muito bem e por isso também andam nos terrenos que lhes são destinados. Cumpramos nós a nossa parte.
E acreditem, não vale a pena procurar e ler o livro do Xavier…