Ontem foi Domingo de Páscoa e, confesso, não me apeteceu escrever nada. Preferi ver e ouvir. E deduzir, tirar conclusões. Conceder-me o tempo de que tantas vezes prescindimos para pensar nas coisas aparentemente menores. As coisas da vida, afinal. Lembrei-me do livro que eu e os meus parceiros de blogue publicámos em Fevereiro de 2019, justamente com o nome “Escrito nas Estrelas e o Vento que Passa”. A crise que atravessamos e a solidão a que nos remetemos recordou-me o maravilhoso Prefácio que o meu Amigo José Aparício escreveu para esse livro. E por isso o fui repescar. Começa ele por dizer (as interrupções do texto total são de minha autoria):
“Nos idos de 1964/65, em comissão militar nas terras do fim do mundo (fronteiras de Angola, Zâmbia e Namíbia), vivi uma experiência inesquecível… …Logo ali chegados a primeira impressão foi a de que nos encontrávamos numa terra sem gente. Só grandes espaços, vegetação rasteira em solo de areia… … e muitos e variados animais selvagens , de pequeno e grande porte… …Ao fim da primeira semana aproximou-se do acampamento um velho bosquímano que apresentava uma ferida numa perna que as mèzinhas do feiticeiro do seu grupo não tinham conseguido debelar…. … Conheci, pela primeira vez, esta etnia e o bosquímano curou-se… … Tratada e curada a ferida que apresentava, continuou a visitar-nos com alguma frequência… … Uma noite convidou-me a acompanhá-lo numa das suas caminhadas. Longe do acampamento e do barulho, deitados na areia que nos circundava para olhar em boa posição para o céu, deu-me uma verdadeira e espantosa lição de astronomia…. … Deu nomes às estrelas e mostrou-me os alinhamentos para locais onde nunca tinha ido mas que eu conhecia… … Contou-me muito das suas tradições, dos valores que não mudam, da existência de um deus todo poderoso que criou tudo o que existe, o céu, a terra , os homens e os animais… … No seu quotidiano, outro elemento muito relevante, e em constante observação, era a interpretação dos sinais do vento, que ali sopra em permanência com maior ou menos intensidade. Ao caminharem estavam permanentemente a agarrar a areia do solo que depois deixavam cair para ver de que lado soprava o vento. Sabiam assim como se deviam deslocar para não serem detetados por outros humanos ou animais… … Sendo um povo de tradição oral , gabava-se que a sua etnia deixara sinais da sua presença na terra desde há 20.000 anos aC, como as gravuras de Drakenberg na RAS demonstram… … Com a convivência que ao longo dos séculos foram tendo, foram-se naturalmente adaptando ao tempo que passa e a novos costumes e vivências. Mas nunca esquecem as suas origens e os ensinamentos dos seus ancestrais, e também os sinais das estrelas que orientam o seu dia a dia. Pensando nos tempos de hoje, vivemos uma época onde são dominantes a pressa e a dispersão… … Vivemos assim o presente e as modas correntes a que nos adaptamos. O que não é mau, evidentemente.Mas não é de uso corrente olharmos para as estrelas ou para sinais que interiormente por vezes sentimos… … Relembro por isso hoje os bosquímanos, as lições importantes que nos deram… … Apesar do vento que passa não devemos nunca esquecer os valores essenciais que permanecem e os sinais das estrelas que, inconscientemente, sentimos quando paramos para pensar, ou quando algo de mal nos atinge.”
Por tudo o que me lembrava deste texto fiquei com curiosidade em saber qual seria a resposta do velho bosquímano (que já deve ter morrido mas que terá sido substituido por outro) à pergunta que lhe faria sobre esta pandemia que estamos a viver. Dir-me-ia, quase de certeza que, como tudo, já estava escrito nas estrelas. E talvez tivesse razão. O problema, se calhar, foi o mundo não parar um pouco para pensar e deixar-se deslumbrar com o seu imparável poder. Afinal é parável e, talvez mais importante, será transformável em função dos tempos e da vida. Bastaria ter olhado para O Vento que Passa… Passámos os dias de Páscoa a falar com as famílias pelo Facetime; muitos dos trabalhadores das empresas passaram a trabalhar em casa (o tal teletrabalho); as pessoas passaram a não necessitar de coisas que, há bem pouco tempo, achavam indispensáveis; as fábricas paradas mudaram as suas linhas de fabricação e passaram a produzir equipamentos essenciais para a luta sanitária; professores e alunos passam a entender-se à distância; Centros de Investigação portugueses inventaram equipamentos em falta no nosso mercado e passaram a produzi-los, para nós e para a exportação; as dificuldades pessoais apareceram de imediato mas a solidariedade intensificou-se: grupos de pessoas, restaurantes passaram a disponibilizar alimentos para quem deles precisa. Os vizinhos passaram a conhecer-se melhor, alguns deles até fazem concertos musicais de varanda para varanda. É a Humanidade a pensar na Humanidade. Quando tudo isto passar, porque há-de passar, como voltará a ser o mundo? Diferente, segundo dizem… Eu sou dos que acreditam que sim, haverá muita coisa que muda, mas pressinto que os Homens, com a passagem dos tempos, pelo menos alguns deles, desejarão continuar a pensar como antes. Tem sido sempre esse o mal da Humanidade. Mas se fizermos como o velho bosquímano, se olharmos bem para as estrelas e tivermos cuidado com o vento que passa, talvez compreendamos que só há um mundo e que nos compete a nós defendê-lo e ultrapassar os muitos vírus que nunca deixarão de aparecer. E, mais uma vez, é bom lembrar que há Humanidade muito boa!
Um excelente texto do criador deste blogue| É evidente que está havendo mudanças como é normal. Mas também há coisas que restam imutáveis; como conteceu na tarde de hije em Telheiras em que ribombaram alguns trovões que me fizeram lembrar as trovoadas da N’Riquinha e o saber de um velho bosquímano.
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Uma história lindíssima, que nos faz pensar. Ainda há muito pouco tempo, se ouvia dizer com frequência, em remate a uma conversa. ” Tudo como dantes “…! E era confortável, sabermos que deveria ser assim, sem desvios. Hoje, estas palavras, mudaram o seu sentido, e bem que precisávamos, que aquele velho bosquímano, nos pudesse dar, a todos ,uma outra lição, para uma nova vida que urge inventar. ..!
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