Nos tempos que correm e usando da liberdade do país em que vivo, venho associar-me a dois grandes títulos e respetivos artigos que me passaram hoje pelas mãos, num dos períodos de leitura a que destinei o meu tempo nestes atribulados dias de clausura. Um deles é da autoria da jornalista filipina Maria Ressa, escolhida pela revista Time como uma das personalidades do ano de 2018, com o título de “Não deixem que o vírus infete a democracia”. O outro artigo é da autoria de Carlos Matos Gomes, militar do 25 de Abril, historiador e escritor distinguido com o Prémio Fernando Namora, incluido na plataforma Medium, com o título “A Falácia”. Com âmbitos, naturalmente, diferentes, abordam, no entanto, o cerne essencial do nosso viver democrático. Enquanto o nosso viver democrático continuar a ser, claro, o que temos hoje.
Por um lado Maria Ressa chama a nossa atenção para tudo o que se tem vindo a passar em muitas partes do mundo, ao abrigo das inevitáveis contingências provocadas pela terrível pandemia que perturbou o planeta. O domínio e o melhor combate à propagação do vírus tem sido levado a cabo pelos países onde os sistemas de proteção, controlo e ataque à doença decorrem de hierarquias bem definidas, pelas quais se sabe quem decide em última instância, decisões, no entanto, apoiadas em estruturas ramificadas e bem interligadas. Tem sido comprovadamente o caso português. O artigo também de hoje no The Guardian, onde compara os diversos métodos utilizados pelos países europeus, reserva uma chamada de duas colunas para o caso de Portugal, onde se descrevem as decisões que mantiveram a epidemia, até agora, dentro dos limites suportáveis pelo Sistema Nacional de Saúde. Há, no entanto, países por todo o mundo nos quais os seus dirigentes aproveitam esta excecionalidade para se reservarem poderes deliberativos pessoais de que, muita gente suspeita, dificilmente abdicarão no futuro. É o caso das Filipinas, país de Maria, mas também da Hungria, Roménia, Chile, Bolívia e Israel. Poderemos falar também de países em que os seus líderes se tornam notáveis pelos seus comportamentos enviesados, erráticos e dominadores. Serão, por exemplo, os casos dos Estados Unidos, do Brasil (onde o próprio Presidente faz agora, subliminarmente, um apelo a um golpe militar), da Turquia, onde as prisões de rua se acumulam a ritmos de inusitada brutalidade, ou da Rússia, onde também o poder do czar já se tornou irreprimível . À luz do vírus infeta-se, despudoradamente, a democracia.
O artigo de Matos Gomes diz-nos respeito. Envolvendo-se, e bem, na dialética do silogismo, demonstra como a falácia da argumentação nos pode conduzir a conclusões abstrusas e de índole antidemocrática. A propósito da celebração do 25 de Abril na Assembleia da República muitas têm sido as vozes que, livremente, se têm manifestado contra ela. Na sua essência e na sua forma. Também há, e muitas, opiniões favoráveis. Mas é fácil de distinguir entre os que discutem a forma e os que , também subliminarmente, obstam à sua essência. Se há data que, verdadeiramente, espelhe o nosso país como um país moderno, democrático e livre, é a de 25 de Abril. Muitos dos que se proclamam contra esta oportunidade de comemoração não eram sequer nascidos em 1974 e podem ainda não conhecer, se ninguém lhes ensinou, o que era viver sem a liberdade. A liberdade que, agora, lhes permite manifestarem o seu desagrado sem terem punição por isso. Mas o Portugal moderno ainda inclui uma enorme parte de gente que sabe o que foi viver sem liberdade , que assistiu e participou nessa gigantesca transformação, que gosta e sabe viver em democracia e que por ela já pôde dar muito mais do que “os falaciosos” de hoje tentam propagar nas suas colunas editoriais ou nos assentos da Assembleia para os quais foram eleitos pelo povo. E muito do povo que os elegeu gosta de viver em liberdade.
Não, não é apenas uma questão de prevenção do vírus (porque essa está prevenida pelas Instituições da Saúde). É, pelo contrário, uma questão de democracia. Aquela em que vivemos tem, com as suas imperfeições, permitido ao país modernizar-se e continuar a desenvolver-se, para quebrar um ostracismo de quase 50 anos que muitos, levianamente, pretendem fazer esquecer. É, como diz Manuel Alegre, uma “pulsão ditatorial ” que é essencial pôr a descoberto e não interromper a democracia. O vírus acabará por ser vencido, muito provavelmente com muito sofrimento, mas a democracia, essa, nunca será vencida porque os que sofrem pelo vírus defendê-la-ão até à morte. As comemorações servem exatamente para nos recordar o que está, verdadeiramente, em causa.
Muito bem.
Nunca é demais defendermos a importância do 25 de Abril de 1974.
Também publiquei no facebook um pequeno texto defendendo a celebração da data no Parlamento, cumprindo as regras sanitárias em vigor
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Carlos do Carmo, cantou, de uma forma lindíssima, ” Por morrer uma andorinha, não acaba Primavera “. E o 25 de Abril, que tanto nos tem acompanhado na vida, como o dia em que o Sol nos iluminou a alma, dando-lhe mais cor, passou, inesperadamente, a ser um motivo de polémica. Um verniz que estala, com um ruido, longe de imaginar. Pessoalmente, ponho-me do lado da barricada dos compreensivelmente indiferentes, quanto ao modo de comemorar este dia, desde que não colida com os sentimentos de uma grande percentagem de portugueses, quase todos nós, que nos recolhemos em casa, disciplinadamente, como numa união de força de interesse cívico e patriótico, que de nada tem a haver com a política partidária.
A alegria de uma comemoração de Páscoa, em família, que foi praticamente adiada para o ano seguinte, sem mágoas, mais o adiamento para outra altura do regresso de tantos emigrantes, que ansiavam por abraçar os seus familiares e amigos, numa festa de saudade, também sem mágoas. Mais, os que não puderam acompanhar os seus mortos, até à sua ultima morada, pelo confinamento tão necessário, para a continuação da vida deste país.. Toda uma situação dramática, de tanta indústria, comércio e de turismo, de portas fechadas, onde o desemprego atinge números novamente assustadores. Todo a moral de um esforço, que ainda irá prolongar-se por muito tempo, está a ser posto em confronto.
O dia que modificou o sorriso dos portugueses, pela necessidade de não se comemorar tão solenemente, também poderá ser comemorado de outra forma, de acordo com a situação, sem mágoas e receios de esquecimento…! Assim o queiramos, que seja !
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