Como talvez se lembrarão, iniciei no dia 25 de Abril uma nova modalidade, “Conversas Imaginárias”, nesse dia com o Almirante Pinheiro de Azevedo. Regresso hoje a essa versão do nosso blogue com uma “conversa” que ficou prometida desde o Dia Mundial da Língua Portuguesa, quando escolhi para representar a nossa língua o professor, poeta, escritor, investigador, divulgador Rómulo de Carvalho. Como se calcula não foi tarefa fácil preparar esta entrevista. Nunca o conheci pessoalmente, nem nenhum dos seus descendentes, embora sempre tenha sido um ferveroso e atento adepto da sua obra. Tive que recorrer aos meios de consulta que estão, normalmente, à nossa disposição, para além de breves comentários que, ao longo da vida, tenho recolhido a seu respeito. Com esta pequena aventura espero manter incólumes a verdade que o professor sempre defendeu e o prestígio que todos lhe reconhecem. Como na primeira conversa as minhas perguntas serão referenciadas como P e as imaginadas respostas como RC. Vamos, então, a isso.
P. – Antes de começarmos a nossa conversa quero pedir-lhe desculpa pela forma que escolhi para o tratar durante este diálogo. Percebi que o poderia tratar por muita coisa mas resolvi tratá-lo por Professor. Que acha?
RC. – Está bem, não tem problema, foi sempre a minha profissão…
P. – Nasceu em Lisboa embora filho de pais algarvios, tanto quanto sei…
RC. – Sim, nasci em Lisboa, na Rua que hoje se chama de Augusto Rosa. O meu pai era funcionário dos CTT e a minha mãe dona de casa…
P. – Mas parece que era muito dada à poesia…
RC. – Sim, a minha mãe era uma razoável poetisa. O meu avô paterno era mestre da capela da Sé de Faro além de professor e compositor musical.
P. – Bom, percebem-se aí umas origens artísticas interessantes. Devo dizer-lhe que conheço bem a Sé de Faro, porque casei lá e só recentemente, depois de um largo período de obras, o órgão da capela voltou a funcionar. E agora paga-se bilhete para visitar a Sé…
RC. — Coisas da modernidade. Como a cultura entre nós não é apoiada tem que se recorrer a esses métodos … Sempre me bati contra isso.
P. – A poesia de sua mãe influenciou-o, Professor?
RC. – Não só a poesia mas, principalmente, a paixão que ela me incutiu pela leitura. Desde miudo que lia os grandes autores portugueses. Com cinco anos escrevi o meu primeiro poema e aos dez li os Lusíadas. Andei no Colégio de Santa Maria, na Rua das Praças, de 1912 a 1914 e por lá fiquei a ensinar francês aos colegas por não ter idade para ir para o liceu. Depois fui para o Liceu Gil Vicente, onde passei a gostar da área de Ciências.
P. – Mas parece que já aí se dedicava a algumas artes…
RC. – Sim, colaborei no Jornal do Liceu, o Quinzenário Académico, cantei com amigos e participei em duas peças teatrais, uma comédia e uma revista em 4 actos (escreva lá actos com c, porque eu não gosto do actual acordo ortográfico).
P. – Nem eu, Professor. Ainda bem que me aconselha a escrever à minha maneira… E depois do Liceu?…
RC. – Matriculei-me no Curso Preparatório de Engenharia Militar na Faculdade de Ciências de Lisboa. Em 1926 fiz greve académica e fui, provisioriamente, alistado na tropa. Mas acabei por fazer, com o meu amigo Carlos Rana, a revista de finalistas que foi musicada pelo maestro Manuel Ribeiro e encenada por Vasco Santana e que teve grande sucesso no Teatro S. Carlos em 1927.
P. – Que grande história, Professor. Não sabia disso… Sabe que andei nos Preparatórios Militares acabando por ir para a Marinha… Mas isso não vem agora ao caso. E depois?
RC. – Troquei Lisboa pelo Porto e matriculei-me em Ciências Físico Químicas e licenciei-me em 1931. Mas andei sempre metido em iniciativas artísticas, teatrais e a escrever nos jornais da Faculdade. Voltei para Lisboa para frequentar o Curso de Ciências Pedagógicas e em 1934 fiz o Exame de Estado para o Magistério Liceal.
P. – E começou a dar aulas… Sei também que teve algumas posições pessoais que lhe deram fama…
RC. – Dei aulas durante 40 anos nos Liceus Pedro Nunes e Camões em Lisboa e no D. João III em Coimbra. De 1973 a 75 trabalhei no Ministério da Educação como co-autor do Boletim do Ensino Secundário. Fui autor de diversos manuais escolares… No que fala de posições pessoais só me lembro de duas: a primeira foi no Liceu Camões quando me queriam obrigar a subir a nota de um aluno. Pedi transferência e fui para o Pedro Nunes e neste, já depois do 25 de Abril, quando ia a entrar no liceu de manhã, um aluno que devia ser chefe de qualquer coisa bateu-me com uma vareta no braço e disse: “Este pode entrar”. Nesse dia passei à reforma.
P. – Bom, não foi coisa pouca… Um filho meu que frequentou o Liceu Camões estudou por um livro de Física de sua autoria. Sei que no Pedro Nunes teve alunos que se tornaram figuras importantes, como Mariano Gago, Marcelo Rebelo de Sousa, António Mega Ferreira…Mas fale-nos, agora, um pouco da sua atividade na divulgação científica…
RC. – Colaborei na Biblioteca Cosmos, fundada por Bento de Jesus Caraça, e impulsionei a Ciência Para Gente Nova a partir de 1952. Participei na importantíssima Revista Presença, com muitos nomes importantes daquela época…
P. – Sim, conheço, e parece que está a ser agora retomada por um novo grupo diversificado de artistas e intelectuais. Ms agora, fale-nos um pouco da sua vida familiar, do seu pseudónimo artístico e da sua obra literária mais conhecida..
RC. – Bom, fui casado duas vezes. Do primeiro casamento tive um filho, o Frederico, e do segundo, com a escritora Natália Nunes, tive uma filha, a Maria Cristina. Só aos 50 anos resolvi arranjar um pseudónimo. Uma coisa que fosse fácil, porque o meu nome, Rómulo, irmão de Remo, fundadores de Roma, era coisa complicada… Por isso escolhi António, António Gedeão. Publiquei a minha primeira obra poética , Movimento Perpétuo, que foi bem recebida. Fui mais tarde para a Academia das Ciências e, em 1990, assumi a direcção do Museu Maynense da Academia.
P. – Sei que levava uma vida muito normal, discreta e rotineira e que escrevia sempre de pé. É verdade?
RC. – Sim, sempre tive esse hábito. Gostava do meu café com leite de manhã sempre na mesma caneca. Nunca fui de grandes amizades, tertúlias, intimidades ou ambições políticas. Nunca acreditei muito na bondade humana nem no mistério da poesia. Do que sempre gostei, toda a vida, foi de estar no laboratório. Por isso quando se fala do tremendo êxito da Pedra Filosofal tento sempre corrigir, porque o poema não é, no meu entendimento, um sonho, mas sim trabalho, dúvida, reflexão. É um poema sobre a urgência do fazer e hoje é um hino para quase tudo… Nunca soube se Deus existe e acho que “só quem vive bem consigo mesmo, vive bem com os outros”…
P. – Diz-se que a sua vida terminou, realmente, aos 90 anos. Será verdade?
RC. – No fundo, é. Escrevi, nessa altura, os Novos Poemas Póstumos , revisão final dos Poemas Póstumos que tinha escrito nos anos 80. Depois calei-me, “achei que não tinha mais nada para dizer”.
P. – Não sei se teria razão mas, claro, respeito a sua vontade. E pelo facto de achar que não tem mais nada para dizer também acho que o devo poupar a mais conversa. Quero agradecer-lhe a amabilidade desta entrevista e o enriquecimento que nos facultou com todas estas declarações. Um grande obrigado.
NOTA DO AUTOR: Mariano Gago decretou como Dia Nacional da Cultura Científica, em 1996, o dia do nascimento de Rómulo de Carvalho. Foi agraciado como Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública em 1987, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Évora em 1995, Grã Cruz da Ordem Militar de Santiago e Espada e Medalha de Mérito da Cultura em 1996. Há uma Rua António Gedeão em Marvila. Em resumo desta entrevista podemos dizer que Rómulo ou Gedeão publicaram 11 livros de poesia, 2 de ficção, duas peças de teatro e dois ensaios.
Dos milhares de poemas de Gedeão que esvoaçam pela biblioteca deixem-me só acabar esta conversa com uma pequena quadra de sua autoria:
Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
A imaginação não tem limites. E desta forma, vamos descobrindo como seria, se…! E tão próximo da realidade, que nos vai mostrando, o que nunca dispusemos ou nunca ousamos saber…!
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Bem !. Nunca é demais divulgar a obra dum grande Professor e dum grande Poeta.
(Mas a instituição do Dia Nacional da Cultura Científica foi em 1996 e não em 1966)
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