Religião, Sociedade, Política

Na noite de 12 de Maio e no dia 13 resolvi ver na televisão, com curiosidade e respeito, a Procissão das Velas  e o Adeus à Virgem das Cerimónias de Fátima. Despindo-me de questões de fé religiosa,  que não cabem no contexto desta minha curiosidade, calculei que iria assistir a uma cerimónia invulgar, talvez única,  no já longo historial destas cerimónias. E tinha razão. Pela primeira vez pude contemplar a enorme planura do Santuário sem um único peregrino. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde 1917. Era uma visão quase fantástica, no seu contraste com a visão, de todos os anos, dos milhares de pessoas que ali se deslocam e enchem, por completo, o recinto. Era o deserto total, maior ainda que em dias normais, mesmo não festivos, onde sempre se encontram visitantes, crentes ou simplesmente turistas.

Aquele cenário deixa uma marca na história deste evento e por ele se percebe a subtileza política da instituição eclesiástica ao contornar uma evidente dificuldade que resultaria , em termos de opinião pública, de manter o figurino habitual das celebrações. Na noite da Procissão houve cem velas previamente dispostas pela organização religiosa e no dia do adeus, esse adeus foi feito apenas pelos celebrantes da cerimónia, entre os quais se encontravam representantes de países estrangeiros.  Em termos da fé dos peregrinos, esse ponto foi  bem ressalvado pelo Cardeal António Marto, Bispo de Leiria e Fátima, nas palavras que dirigiu a todos os que se encontravam nas suas casas e precisavam de o ouvir.

E é a este ponto que eu quero chegar: ao discurso de António Marto. Em tempos difíceis,  impostos pela terrível pandemia que assola o país e o mundo, são férteis os que pronunciam palavras de lamento social e de atenção para com os mais desprotegidos. São comuns estas intenções embora percebamos que, em muitos casos, se trata de intenções volúveis e levianas. Surge, de forma arrepiante, o discurso das bondadezinhas, das generosidades devidamente publicitadas. Ora as palavras de António Marto são de outro nível intelectual. Religioso, claro, mas fortemente social.  Transcrevo aqui algumas das suas frases sem referir, no entanto, algumas das suas citações do Papa Francisco que já nos habituou a uma prática social bem mais compatível com a sociedade, na sua complexidade ecuménica.  Diz António Marto:

“De repente, algo que nem sequer podíamos imaginar confina-nos nas nossas casas e priva-nos dos momentos mais afetuosos da vida. É uma situação trágica e sem precedentes mas que nos convida a refletir sobre a vida…  Põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da  nossa condição humana… Leva-nos a pensar sobre o sentido da vida… Obriga-nos a repensar os nossos hábitos, o nosso estilo de vida, a escala de valores que nos orienta . Não se pode viver só para produzir e para consumir. A liberdade da vida só pode ser exercida na responsabilidade e na solidariedade, porque ou nos salvamos todos juntos ou nos afundamos todos juntos. … esta nova pandemia da pobreza conduz à exclusão,  agravada pela indiferença e pelo individualismo… Nenhum de nós pode ficar indiferente…

Punhamos os aspetos religiosos de parte e concentremo-nos na essência da mensagem. Quem desdenharia dizer estas mesmas palavras em contextos de natureza social, institucional ou política? O problema é que dizê-las é bem mais fácil do que fazer com que os seus efeitos se verifiquem. A solidariedade e o humanismo não se compadecem com os falsos pregões com que todos os dias somos atacados, apetecia-me  dizer “insultados”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4 pensamentos sobre “Religião, Sociedade, Política

  1. Inesperadamente, um mundo diferente daquele que vivemos todos os dias. A sensação de solidão que nos faz pensar, como somos tudo e não somos nada, tão bem representado no Vaticano e em Fátima…!

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  2. O ponto de partida, a grande lição foi dada pelo Papa na Páscoa quando falou para uma multidão fisicamente ausente na Praça de S.Pedro.
    O autor desta nota frequentou e deixou há muito de frequentar igrejas. Embora viva em frente da Igreja Luterana, á vista da Mesquita, a metros da Igreja do Maná e a 5 minutos da Igreja de Nª Sra de Fátima. Não muito longe dizem-me haver uma Sinagoga e um Templo Indu.
    Se calhar a densidade ( ou o excesso ? ) deu em abstinência… Que é diferente de indiferência…

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