Ontem foi o Dia Mundial da Criança e, claro, de todos os quadrantes surgiram textos, imagens, reportagens sobre o mundo da criança atual. É uma comemoração bem merecida e extremamente louvável. “Que seria do mundo se não fossem as crianças?” E, confesso-vos, também me apeteceu escrever sobre as crianças. Até fazer um poema… Mas pensei e parei. Não valia apena. O nosso mundo estava cheio de textos e poemas sobre as crianças. A minha originalidade seria muito difícil. Mas talvez o que me tenha mais incomodado foi não ter visto nada sobre as “outras crianças”, aquelas de que raramente nos lembramos, as que, por todo o mundo, morrem aos milhares todos os dias. Entre nós o panorama não será tão lancinante mas existem muitos apelos ocultos, surdos, sempre, de uma forma geral, sorridentes, de crianças que vivem perto, que vivem por aqui… Gostei de ver os pequeninos a entrarem nas suas creches, nos seus pré-escolares, apaixonados uns pelos outros, rindo, gritando, chorando de vez em quando, como, felizmente as crianças sempre fazem. E os pais gostaram de os ver à distância, com as suas máscaras postas, era a paixão a transbordar entre todos, crianças, pais e cuidadores. Sabemos que muitos deles, para além da alegria do reencontro, vão ter, como garantido, o lanche escolar, para muitos a refeição do dia. Mas há uns outros que não distinguimos, que se calhar nem sequer ali estão, numa creche, num refúgio de alegria que a sua meninice tanto exige. Foi dessas crianças que ontem mais me lembrei. Muitas delas deviam estar ali, à nossa vista, mas felizmente, no meio da sua alegria não as distinguimos.
Tenho, como calcularão, crianças e meninos na minha família. Já são grandes, adultos alguns, mas para mim, sempre crianças, sempre meninos. Não se consegue deixar de sofrer por eles, de lhes chamar a atenção para os “cuidados” que devem ter a fazer isto ou aquilo. Como se precisassem… Não precisam, claro, e disfarçam o riso galhofeiro… Mas são as nossas crianças, iguaizinhas às que vimos nas comemorações do dia de ontem, embora eles não acreditem. Mas, um dia, também vão perceber e acreditar. “Que seria do mundo sem as crianças?” Reverti a memória para a minha infância e, por mera coincidência, estive junto com dois amigos de infância, dos tempos dos calções, dos fundilhos nas calças, das meis solas gastas em duas semanas de correrias, dos jogos que nos preenchiam a meninice. Que bem me lembro da fisga, de jogar os bilas aos três buracos e da trapeira com que jogávamos à bola porque a bola a sério, que seria o prémio maior dos bonecos da bola que comprávamos aos tostões, nunca nos saía. Parece que nunca sairam, ficavam sempre na casa, mas para nós era o sonho incompleto de uma vida de brincadeira. Somos sempre crianças e por isso, ontem, lembrei-me muito dos fundilhos nas calças (coisa que hoje quase ninguém sabe o que é…)
E das crianças passei às Artes num programa da noite na televisão. Aprecio as artes e os seus protagonistas, as suas quezílias e os seus sucessos, as lutas que travam e os momentos apaixonantes que nos concedem. A bancada que falava das artes e das suas crises tinha de tudo: ministra, empresários, atores, cantores, maestros, divulgadores, em suma, todos os que fazem das artes o seu modo de vida entre nós. E ouvi, vi-lhes nos olhos as amarguras da crise atual, as queixas do que não se tem sabido fazer pelas artes e pela cultura ao longo dos tempos. Mas falaram com respeito, com conhecimento, com uma pontinha de sonho por vezes, mas isso faz parte das artes, do mundo inesgotável de imaginação que serve não só para nos entreter mas, principalmente, para nos dar a razão da cultura, a magia do pensamento, o esplendor do que não é físico mas espiritual. E muitos dos protagonistas dos palcos ou dos campos ao ar livre contaram histórias maravilhosas de solidariedade entre eles, associando-se para, nesta fase, arranjarem meios de alimentação para muitos deles. Os amargos contrastes das belas realidades de palco com as amarguras dos bastidores. Alguns do que ali estavam e muitos outros que não estavam apareceram, muitas vezes, nas televisões e nas redes digitais com belíssimas iniciativas para nos ajudarem no nosso confinamento. Mas eles também estavam confinados e os seus problemas não eram diferentes dos nossos. Têm sofrido como nós. Teatros fechados não têm público nem receitas. Talvez dê tempo para pensar novos espetáculos mas é preciso que os autores comam e ultrapassem a crise. Os cinemas vão abrir mas parece não terem filmes para exibir. Durante a crise ninguém os fez. Temos agora, aos poucos, a oportunidade, diria quase a obrigação, de os ir ver aos seus territórios de luta, aos palcos, às arenas, seja onde for, pagando preço justo e compensador por tudo o que já nos deram recentemente sem nada pedir. E fiquei feliz porque me pareceu que estão em curso diálogos e planos que talvez possam vir a melhorar o tão complexo e variado mundo das artes. Para que, como disse quem toda a gente sabe, “valha a pena fazer a guerra”.
Por isso me apeteceu juntar as Crianças com as Artes. Para que, de uma vez por todas, se cumpra com as crianças o dever incontornável de lhes dar o caminho das artes. Para que a gente das artes não me faça lembrar, como ontem aconteceu, os fundilhos dos calções das crianças mais pobres.
Ser criança foi muito bom – embora na altura estivéssemos desejosos de ser adultos !
O teatro sempre foi difícil para os artistas independentes. Este talvez seja o período de maiores dificuldades, mas lembro-me dos anos depois do 25 de Abril em que também não foi fácil. Nunca me esqueci duma noite no Teatro do Bairro Alto do Luís Miguel Cintra, no inverno, em que, para os espectadores não enregelarem, em cada cadeira havia uma manta para tapar as pernas !
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Coisas de miúdos, ou de crianças, entre tantas outras que nunca puderam brincar e se tornaram adultas, cedo demais …! Tudo, foi tão bem lembrado. Os bonecos para a troca e a caderneta em que faltava sempre o mais difícil. Não se o Peyroteo ou o Albano, ou ainda o Travassos…! E o berlinde, que já poucos conhecem. A bola trapeira, por que tantos ralhetes sofri, lá em casa, por ” sacar ” algumas meias de seda, ao poceiro da roupa suja, para fabricar uma bola bem recheada de jornais, ainda a tingirem-me as mãos…! E das artes, vamos ficando à espera, de novos rumos…!
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