Cartas da Minha Aldeia 2

Estatisticamente, muito da nossa vida, circunscreve-se dentro de um perímetro bastante reduzido, perdendo-se no labirinto das ideias. Mais do que muitas vezes pensamos. Talvez uma verdade de La Palice, quando nos vemos encerrados numa casa no campo, como aquela em que eu decidi viver por opção, há quase trinta anos. O enorme espaço, que geralmente não ocupamos e nos leva a pensar, que já vivemos este ou aquele momento antes, ou talvez, visto ou lido em qualquer revista já esquecida. Os prazeres do silêncio e da Natureza, como aquela em que aprendi a viver em garoto, dentro da cidade de Coimbra, perto do Seminário e do Colégio Rainha Santa, com o espaço de um jardim e um grande quintal, onde dava largas à imaginação com os meus irmãos e vizinhos mais chegados, com poucas diferenças de idade. Os quintais, divididos por muros de alvenaria, que dificilmente poderiam servir de fronteiras, pela irrequietude e agilidade de uma juventude saudável. Umas vezes sentados no muro, a conversar sobre assuntos próprios da garotada. Outras vezes, virados para o nosso lado, a congeminar novos jogos e aventuras. Era a Terra de Ninguém, como a minha mãe lhe chamava, quando se assomava à janela chamando-nos para o lanche. Uma merenda, sempre com pouco açúcar, por exigência do racionamento. Era o Banacao, que tanto apreciava, desaparecido do nosso menú, como tantas outras marcas nacionais, acompanhada do pão com manteiga caseira, de que há muito, também perdi o seu sabor genuino. Eram tempos ainda muito duros da guerra, que ensombravam toda a Europa e nos fazia realçar o prazer dos sabores, com mais acuidade.

E naqueles quintais sem fronteiras, fomos um pouco de tudo, em jogos imaginários. Índios e Cowboys, Tarzans e Espadachins, cruzando armas em defesa de sua dama. Tudo se acalmava, com as idas para a praia ou para as Termas, acompanhando os pais, na senda de outras aventuras mais sublimes, fornecendo novos historiais para a vida…! Restava sempre tempo, nas férias grandes, dando continuidade às brincadeiras do faz-de-conta.
Tenho dificuldades em pensar, o que será hoje, o dia a dia das praias, com os problemas que o mundo hoje atravessa. A descoberta de novos conhecimentos, com o distanciamento dos chapéus de Sol, ou nas esplanadas, sem hipóteses de continuidade. O vermo-nos despidos de amigos para jogar uma partida de ténis ou de golfe. Os clubes vazios, formando pequenos grupos restritos. O subir e descer no elevador do prédio em que habita ou do hotel, e ter que tocar no botão onde dezenas de pessoas já tocaram antes, mesmo que constantemente desinfectado. A pressa em carregar no botão para subir, sem esperar, delicadamente, pelo vizinho(a) que acaba de entrar no prédio, para reduzir o contágio “so closed “, numa cabine com menos de dois metros quadrados. Aquele bate-papo, que ao fim de tantos anos, ainda se faz, fugazmente, com o vizinho que não há maneira de entrar nas simpatias. Ou ainda, atrasarmos o passo, para dar tempo para entrarmos sossegadamente, com um elevador só para nós. Maquiavélicas, estas imagens, que se me atravessam no pensamento, que aos poucos, vão perdendo a noção de sociedade…!

Aos poucos, obrigatoriamente, vamos começando a pensar diferente, numa sociedade diferente, num mundo diferente. Será assim ? Espero bem que seja assim, para não termos que nos fecharmos nas recordações em que eramos mais felizes no faz-de-conta…!

Um pensamento sobre “Cartas da Minha Aldeia 2

  1. Continuo a ser um optimista : espero que este distanciamento resultante do covid 19 seja apenas um intervalo na nossa vida social e que em breve a vacina e/ou a cura estejam ao nosso alcance

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