Para quem não é desse tempo valerá a pena recordar a existência, na época do Estado Novo, de um órgão consultivo da República Portuguesa chamado Câmara Corporativa. Foi criada em finais de 1934 e durou, após 11 legislaturas, até ao 25 de Abril de 1974. O conceito e o órgão foram criados e inventados, como na época era tradicional, por um senhor chamado Salazar que criou praticamente tudo o que regia os destinos do país. Embora com funções consultivas, a sua função essencial era representar todos os organismos corporativos do país, de natureza económica, cultural, social, sindical, assistencial, autarquias e outras. Os procuradores à Câmara Corporativa (eram assim chamados) integravam, em conjunto com os deputados e os representantes dos municípios, o chamado colégio eleitoral, no sistema de eleição indireta do Chefe do Estado. A Câmara Corporativa era, na sua essência, um verdadeiro apostolado da ditadura, como interessava ao Estado vigente. Dela dependiam, em linha direta, as Casas do Povo, as Casas dos Pescadores, a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), Grémios da Lavoura, Instituto para a Alta Cultura, Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, Junta Nacional de Educação, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa, Obra das Mães pela Educação Nacional, PIDE e sindicatos nacionais. Não se podia fazer melhor… Tudo o que mexesse dependia, em última instância, do Estado protetor e universalmente sabedor. Coisa decalcada de outros países em que os regimes eram também considerados ditatoriais. O último presidente da Câmara Corporativa foi Mário Júlio Almeida e Costa que viu o seu mandato interrompido e eliminado em 25 de Abril de 1974.
Com a revolução e a democratização do país as instituições passaram, naturalmente, a funcionar de outra maneira. A nova Constituição deu forma, embora com posteriores modificações, a um sistema democrático, com órgãos semelhantes ao que de melhor se fazia em quase todos os países europeus. E assim se tem vivido, com perturbações, dicussões, algumas malfeitorias, coisas que o sistema democrático não possa ir corrigindo e punindo se necessário.
Mas a democracia, sendo “o menos mau de todos os regimes até agora encontrados”, sofre de entorses e de tolerâncias respaldadas nos poderes da justiça e das leis. Nos tempos mais recentes os novos sistemas de comunicação e de transferência de informações ganharam um tal poder e disseminação que os sistemas democráticos têm acrescidas dificuldades de superar e de trazer à luz do dia as verdades que se ocultam nas falsas aleivosias que os sistemas, quase anónimos, vão produzindo. E os múltiplos interesses das sociedades começam a ganhar espaços e a manifestar opiniões que, no fundo, são combates diretos aos governos vigentes. E esses múltiplos interesses reunem-se e encontram eco em instituições que, de acordo com os poderes que a democracia lhes concedeu, assumem o desplante, quando lhes convém, de pugnarem, publicamente, pelos interesses obscuros ou enviesados com que muitos dos seus associados ainda sonham. É o minar da democracia, atacá-la por dentro, sugar-lhe os seus proveitos para benefícios nem sempre muito evidentes. Parece, e começa a perceber-se, que se trata do regresso silencioso das antigas corporações, das que falámos no início deste texto, das que dizem que não estão de acordo com nada, mas que não apresentam soluções sérias para os problemas enunciados. É o reaparecimento, em força, dos fortes interesses das corporações de médicos, advogados, de políticos medíocres que exaltam banalidades populares para quem, naturalmente, não está preparado culturalmente para os entender. São os interesses satélites do serviço público, pelo qual a nossa Constituição se rege, que pretendem desviar para as suas áreas o manancial de complementaridades, à revelia de protocolos claros e equitativos, que as atividades públicas sempre necessitam. E, para além das declarações enganadoras que propalam, aparecem, com frequência, atores nos meandros da corrupção que, como vamos vendo, são descobertos e sujeitos à aplicação da justiça nem sempre tão expedita como se exigiria. São as tolerâncias da democracia, no seu âmago de correção, de discussão aberta e de lisura de processos , que começam a ser aproveitados pelos interesses corporativos de classes que, aparentando isenção e práticas éticas, mais não esperam do que alcançar as benesses provenientes do Estado, à margem da claridade das leis e à custa dos contribuintes cumpridores.
Esperemos que os já evidentes ataques corporativos não venham a assemelhar-se à velha Câmara Corporativa em tão boa hora eliminada.