A todos nós custa, julgo, ver obscenamente grafitados muros e paredes das nossas cidades, em locais não autorizados, ver as famosas “beatas” no chão, assistir a reportagens sobre o mau ou gravoso relacionamento entre cidadãos, saber do difícil e incontrolado aumento da violência doméstica. Sabemos que isso não se passa só cá, parece ser apanágio dos tempos modernos, mas o que não nos desobriga de manifestarmos o nosso desagrado. Mas há outras coisas talvez piores. Os jovens ao atingirem a idade de votar não sabem o que é uma Assembleia Municipal, um Executivo Camarário, um vereador, um deputado; quais são os órgãos da Comunidade Europeia de que tanto ouvem falar. Ignoram (às vezes até desprezam) as Forças Armadas, os conceitos de paz mundial, de segurança internacional, problemas ambientais ou de voluntariado. Uma enorme panóplia de conhecimentos que, muitas vezes, os próprios pais têm dificuldade em explicar. Parece caber ao Sistema de Educação Público proporcionar esses conhecimentos, criando cultura e propondo uma vida democrática com respeito pelas minorias e encaminhando o saber para as igualdades. Há uma disciplina escolar com a qual se pretende atingir estes objetivos gerais com o nome de Cidadania e Desenvolvimento.
Esta disciplina abrange as seguintes áreas curriculares (baseio-me no parecer/artigo da Professora Elvira Tristão, doutorada em Educação): desenvolvimento de competências pessoais e sociais; promoção do pensamento crítico; desenvolvimento da participação ativa; desenvolvimento de conhecimentos em áreas não formais, nos eixos da atitude cívica individual, do relacionamento interpessoal e do relacionamento social e intercultural. Especificando os temas curriculares : direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento humano sustentável, educação ambiental, saúde, sexualidade, educação para os “media”, instituições e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, risco, segurança rodoviária, empreendedorismo, mundo do trabalho, segurança, defesa e paz, bem-estar animal e voluntariado.
Houve em Julho um encarregado de educação que alegou o direito à objeção de consciência para que os seus filhos não frequentassem esta disciplina. Mas a coisa agora tomou uma forma muito mais mediática: alguém (não sei quem) conseguiu arranjar um conjunto de 100 pessoas (a que chamaram de personalidades notáveis) que subscreveram um abaixo-assinado contra a frequência desta disciplina, por a considerarem uma violência, uma inutilidade ou, até, poder estar ferida de inconstitucionalidade. Percorri, com algum cuidado, os cem nomes que foram publicitados por ordem alfabética. Fiquei contente por não estar lá nenhum amigo meu mas encontrei, realmente, muitos nomes exuberantemente conhecidos no nosso cardápio social. Nomes de pessoas para as quais não se justifica a obrigatoriedade de frequentar aquelas aulas. Quem organizou a lista teve o cuidado de procurar nomes de pessoas conhecidas mas a maior parte delas reformadas, jubiladas, algumas ainda em ativos de “circunstância”. É pena que a lista não inclua nomes, também já bem conhecidos, de pessoas que foram alunos, assistentes e sucessores dos da geração “acreditada”. Desculpar-me-ão mas a lista tresandou-me a bolor e suspeito (apenas suspeita) de que alguns nem sequer terão lido o papel que assinaram. Há lá de tudo: políticos (muitos deles já retirados), representantes da Igreja Católica, professores jubilados ou por jubilar, militares de alta patente reformados, reitores, vice-reitores e notáveis professores, gente ainda no ativo profissional mas com reconhecidas tendências políticas. Até um renomado constitucionalista que, em altura mais adequada, poderia ter suscitado o tal problema da inconstitucionalidade, coisa que não fez. Só agora terá retomado contactos com a vida real e se terá confrontado com o tal papelinho para assinar.
Não vale a pena analisar as histórias de vida de todos os subscritores. O facto global, em si próprio, surpreende e ilude muita gente. Para quem esteja com idades mais avançadas lembrar-se-á dos oportunismos, das “mudanças de casacas” de alguns nomes que por lá se encontram e que só o tempo poderá mascarar essas “dúcteis” personalidades aos mais novos que hoje leiam o abaixo-assinado.
E por isso, o “regresso desta Intelligenzia”, pode bem ser o que a Professora Elvira Tristão diz no seu artigo: “Se esta polémica não esconderá um programa ideológico da direita conservadora”!
Aqui fica. A disciplina chama-se “Cidadania e Desenvolvimento”.
É preocupante, o que se passa connosco. Não obstante o problema da Pandemia, também as consequências da sua passagem. Ainda, o aproveitamento dos déficites e da crise económica, que dificilmente vamos ver o fim. O arrivismo, tão apropriados destes tempos de incerteza, que alguns sagazes politícos não deixam ficar para trás e as contas baralhadas, de relatórios sempre dúbios a apelar a ideia de não haver culpados, terminando com um carimbo de contas encerradas. Mas, mais do que isso, o virar da página, para uma leitura pelo avesso, com a surpresa de vermos tudo ao contrário, esquecendo o que se passou, ou estar ainda a passar, como qualquer procissão, até ao encerramento do portão do adro da igreja, onde a festa se acaba.
E estas tempestades do nosso pequeno Mar de Sargaços, que pouco a pouco vão levando para o fundo, as ideologias que mal ou bem acreditávamos serem úteis à vida democrática, pelo cansaço das incompreensões e interesses alheios ? Não seria uma boa altura para se fazer uma auto-crítica, para descarregar as tensões e aclarar as almas que hoje lutam com as suas próprias dúvidas, antes de se continuar a navegar em águas turbulentas ? E a ” Cidadania e o Desenvolvimento “, teria outras leituras, com ganhos bastante maiores…!
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