Senzala do Preto Velho

Durante cerca de 12 anos, no século passado claro, uma “costela” minha andou pelo Brasil, esse país irmão que todos nós conhecemos de nome mas, na maior parte dos casos, mal. Em termos de memórias pessoais eu já lá tinha estado, por duas vezes, mais em situações de trabalho do que turismo. Como estava acompanhado de amigo brasileiro que ainda hoje recordo com muita saudade tive oportunidade de apreciar e conviver em alguns meios sociais e técnicos, do Rio, de S. Paulo e Santos que me deixaram um lastro de impressões, apesar de tudo, fugidias e apressadas do que é o Brasil. Mas daquela época (finais dos anos 70) guardei imagens lindíssimas daquela terra e da forma de viver e encarar a vida daquela gente. Fiquei a gostar, genericamente, do Brasil, sem o conhecer, na realidade.

Mas no percurso de vida da minha “costela” por aquelas paragens (cerca de 12 anos) acabei por ter oportunidade de visitar e viver noutras zonas, menos metropolitanas mas talvez mais genuinas no que respeita ao viver brasileiro. Por duas vezes estive no nordeste, no mais pequeno estado federal do Brasil, Sergipe e na sua capital Aracajú, nomes e espaços que eu não conhecia de todo. Sergipe deve o seu nome à antiga língua tupi significando “rio dos siris” (os maravilhosos caranguejos azuis de toda esta zona, cujas pernas se comem acompanhadas por caipirinhas). São espaços e hábitos pelos quais me apaixonei e de que guardo, como se compreende, as melhores recordações. Sergipe é, realmente o mais pequeno dos 27 estados do Brasil, com apenas cerca de 21.900 km2. Faz fronteira a sul e a oeste com o estado da Baía (esse sim, mais conhecido…) e a norte com o estado de Alagoas. Sem querer entrar nos meandros da História de Sergipe basta-me, por hoje, relembrar que, depois dos desvarios coloniais de franceses e holandeses nos séculos XVII e XVIII, um célebre capitão português Cristóvão de Barros foi incumbido de reconquistar o território o que conseguiu com os destemores coloniais lusitanos em 1590. Para marcar o seu feito resolveu fundar, nas margens do rio Sergipe, uma cidade a que deu, naturalmente, o seu nome, Cristóvão, que passou a ser mais tarde chamada de S. Cristóvão. D. Pedro I reconheceu a independência de Sergipe do Estado da Baía ao qual se encontrava ligado. S. Cristóvão é uma pequena cidade, lindíssima e carismática, com uma Praça principal , a Praça de S. Francisco, já considerada desde 1968 Património Mundial pela UNESCO. Mas desde 1855 que a capital do Estado passou a ser Aracajú (feliz acrónimo da mistura de araras e cajueiros) que é hoje uma cidade moderna, virada para o mar e com excelentes condições de vida. A Igreja de Sto António é um dos marcos da cidade relembrando o nascimento da cidade.

Viver algum tempo em Aracajú e não visitar S. Cristóvão seria um crime essencial que não me dispus a cometer. Numa dessas visitas, esta em 2004, a tal minha “costela” arranjou-me viatura e condutor, o Romildo, que nos fez uma maravilhosa companhia durante a viagem de cerca de 25 km. Uma das grandes ambições da vida do Romildo era vir de ónibus (autocarro) até Lisboa. Adoraria conhecer Portugal. Com imensa imaginação e delicadeza, claro, lá lhe conseguimos explicar que a viagem não era assim tão direta porque tinha que meter um avião no meio. Riu-se e disse logo que nunca andaria de avião. Como parece que não andou. Mas chegados a S. Cristóvão, e depois de visitar a cidade ( a tal Praça de S Francisco e o não muito mais que havia para ver) levou-nos a almoçar ao que, segundo ele, era o melhor restaurante de S. Cristóvão, “A Senzala do Preto Velho”. E corroborei esse facto. Não poderia haver melhor restaurante na terra. Se se lembrarem das casas de comida da “Tieta do Agreste” ou da “Gabiela Cravo e Canela” terão reconstituido a Senzala em que nos sentámos, localizada na Rua Messias Prado, 84.

O dono do restaurante era, como se pode ver, o Acácio e a Chefe de Cozinha chamava-se Maria Aparecida (nome vulgar no nordeste em homenagem à Nossa Senhora da Aparecida). Foi um almoço inesquecível, com todas as iguarias da terra, magistralmente cozinhadas pela Chefe Aparecida, com fartura transbordante para os 3 comensais (Romildo incluido, claro) sem perdoarmos as indispensáveis caipirinhas. Guardei a fatura desse almoço no meu arquivo e posso dizer-vos, de viva letra, que o preço total foi de 25,90 Reais, o que à data corresponderia a cerca de 8,5 Euros (para quem quiser lá ir o único problema é o preço da viagem). Ainda a propósito de nomes não posso esquecer uma deliciosa sergipana que se chamava Madinusa, nome evidentemente adaptado do “Made in USA” que a mãe tinha visto numa entretela de vestido importado. Que maravilha!

Mas Aracajú não é só isto. Tem uma Universidade Federal desde 1968 (realizando muitos intercâmbios com universidades portuguesas, principalmente na área de engenharia de minas), e o Estado de Sergipe tem uma atividade económica interessante com exportações predominantes de sucos de frutos, cimento e açúcar. Aracajú é uma cidade moderna e apetecível onde se encontram belos centros comerciais (Rio Mar e Jardins). Foi nesta cidade que se fundou a quarta maior rede de supermercados do Brasil, a G. Barbosa, que ainda hoje atua com sucesso no mercado nordestino. É um Estado desenvolvido nos domínios da educação, cultura e desporto. Diversos futebolistas sergipanos têm feito carreira na Europa, dos quais o mais recente é Diego Costa, natural de Lagartos, agora a jogar no Atlético de Madrid (se não me engano).

Vivi em Aracajú o chamado Précajú que é, nem mais nem menos, o Carnaval antecipado da cidade para não ser confundido com o da Baía que tem, naturalmente, uma muito maior ressonância. O desfile carnavalesco foi também inesquecível. As pessoas que se quisessem incorporar no desfile do “trioeléctrico” do seu artista preferido comprava uns aventais de cores próprias, os “abadás”, e iam percorrendo o circuito ao som das músicas dos artistas presentes. Um “trioeleéctrico” é um autocarro adaptado, em cuja cobertura tocam os grupos e cantam e dançam os artistas. O meu percurso foi feito no grupo da Ivete Sangalo que acabei por ver de muito perto por, a certa altura me encontrar já no camarote do G.Barbosa, patrocinador importante daquele desfile. Veio a seguir também o Chiclete com Banana, artista que estava na berra e que ainda hoje julgo ter grande sucesso no Brasil.

Mas a doçura da terra ultrapassa em muito este fervilhar passageiro do carnaval. Sergipe tem costa de mar espraiada e, portanto, sem portos de mar importantes. Todo o seu comércio é fluvial, pelo rio S. Francisco, que passa pelos maravilhosos areais dunosos até Mangue Seco que foi a paisagem escolhida para as telenovelas atrás citadas. O artesanato cerâmico e têxtil de Sergipe são muito ricos. Os presépios rústicos e as ceias de Cristo em barro artístico popular ganharam fama em todo o mundo. Tudo isto com a “Sanzala do Preto Velho” justificam a minha paixão e, espero, este meu desabafo falsamente literário. Talvez seja uma dívida que estou a pagar à minha “costela” de que tanto vos tenho falado ao longo do texto. Se assim for, ainda bem…

2 pensamentos sobre “Senzala do Preto Velho

  1. É sempre bom falarmos do Brasil. E quem o conhece, sabe porque digo isto…! A beleza de um país que soube colorir-se, numa tonalidade emprestada pelo Sol, sob os efeitos de uma miragem das finas areias das suas praias, tornada realidade. O doce ondular da pronuncia das suas gentes e a gentileza da sua amizade que nos dá a entender aquele assunto da ” costela, ” tão bem mencionada no texto. E é assim que eu também vou recordando sempre o pouco do Brasil que conheci, deixando-me retemperar na frescura de Petrópolis, ou antes, a caminho de…! Se é que o fabuloso Hotel Quitandinha, ainda respira os bons ares daquele tempo, em que tudo crescia num verdejante progresso do pós-guerra !

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  2. Parabéns pelo belo texto q me fez recordar aquela época quando trabalhava com seu filho Até hoje somos amigos embora o Atlântico nos separe. Sem dúvida, Sergipe é um pérola encravada no Nordeste brasileiro.

    Um forte abraço

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