Escrevo hoje sobre uma editora, talvez pouco lembrada e desconhecida das atuais gerações, mas que foi, na opinião de ilustres conhecedores, das mais dinâmicas e qualificadas da sua época. A Editora Ulisseia foi criada em 1947 por um homem extraordinário, Dr. Joaquim Figueiredo de Magalhâes, vivendo autonomamente até 1972, ano em que foi comprada pelo grupo Verbo. Julgo que ainda existe hoje, integrada em grupo editorial de maior dimensão. Sem a pujança cultural que a sua fase de criação impôs nas décadas de 50 e 60 do século passado.
Conheci a Editora Ulisseia por ter conhecido o Dr. Figueiredo de Magalhães. Através de um amigo comum que mo apresentou, numa daquelas curvas difíceis que a vida às vezes nos apronta, e me facultou, de imediato, colaborações de trabalho, como tradutor, em áreas para as quais me sentia razoavelmente preparado. Esses dois meus Amigos já morreram, o Dr. Figueiredo de Magalhães em 2008, com 92 anos. O texto de hoje tem, como é evidente, uma forte componente de saudade, homenagem e agradecimento, talvez com atraso ao qual não me escuso. A vida é assim: atrasa-nos, por vezes, as intenções deixando-nos, no entanto, as marcas indeléveis de quem sempre merece os nossos louvores e simpatia.
Figueiredo de Magalhães foi casado durante 33 anos com Rosa Lobato Faria, figura notável das letras também já desaparecida. Lembro-me de os ver, com a restante família, num programa televisivo, há largos anos, programa de que não recordo o nome, no qual as famílias eram sujeitas a diversas perguntas de “cultura geral”. A que respondesse acertadamente a mais perguntas era a vencedora. Nessa noite a família Figueiredo Magalhães/Lobato Faria foi a vencedora incontestável. Só o voltei a ver e ouvir numa entrevista que deu à SIC, em 1998, num programa “Conversas Secretas” que está disponível no YouTube.
Mas voltemos ao princípio. Figueiredo de Magalhães foi um percursor da edição qualificada em Portugal. Foi o primeiro editor português a estar presente na Feira do Livro em Frankfurt. Tinha o prestígio e a ambição suficientes para se rodear das figuras mais notáveis da sua época para o apoiarem na escolha das obras e para criarem novos visuais estilísticos para os seus livros. Mestre Aquilino Ribeiro foi um deles. Foi o introdutor da literatura neo-realista em Portugal dando a conhecer obras de Jack Kerouac, Françoise Sagan, Ferdinand Celine, Ercole Patti, Richard Kaufmann e muitos outros que viremos a referir mais adiante. Famosos escritores portugueses, como José Cardoso Pires, Alexandre O’Neill, Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, foram patrocinados pela Ulisseia, com pagamentos antecipados, para poderem escrever em paralelo com as profissões em que se ocupavam.
Figueiredo de Magalhães nasceu no Porto em 1916, estudou no colégio jesuita de La Guardia e licenciou-se em Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa. Em paralelo com a Ulisseia imaginou criar uma revista literária de qualidade a que pensou chamar “A Semana”. Convocou José Cardoso Pires para entrevistar o primeiro-ministro polaco Gomulka, Alexandre O’Neill para o Presidente Tito da Jugoslávia e Castro Soromenho para Abdel Nasser do Egipto. A PIDE soube disso e chamou-o pedindo-lhe explicações. Perguntaram-lhe se não havia ninguém interessante em Portugal para entrevistar e Magalhães foi rápido a responder perguntando se lhe arranjavam uma entrevista com o dr. Salazar. Claro que a “A Semana” nunca chegou a sair. Só mais tarde a sua ideia conseguiu ir em frente com a publicação da revista “Almanaque” que teve grande destaque na sua época.
Regresso ao meu caso. Fui convidado a traduzir livros da Pelicano, edição portuguesa da Pelican Penguin Books inglesa, fundada em 1937 por Allen Lane. Claro que aceitei… E que jeito que isso me deu… Acho que cumpri bem e a Pelicano tinha excelente mercado na altura. Traduzi, por ordem cronológica, “O Hipnotismo – Realidade e Ficção” de F. L. Marcuse; “A Alquimia” de E. J. Holmyard e “A Igreja Numa Era de Revolução (De 1789 aos nossos dias) de Alec R. Vidler. São livros antigos mas ainda disponíveis nas livrarias, a pedido, claro. Interrompi a minha colaboração, em acordo com Figueiredo de Magalhães, por me confrontar com outras solicitações incompatíveis, em tempo, com o trabalho de tradução.
Mas a Editora Ulisseia tornou-se famosa pelas obras de fundo que conseguiu publicar. Talvez alguém se lembre de alguns títulos famosos, hoje disponíveis noutras edições: “Adeus Às Armas” de E. Hemingway, livro com capa do artista António Garcia; “Um Amor em Roma” de Ercole Patti; ” O Céu Não Paga Dividendos” de Richard Kaufmann; “Com Estas Minhas Mãos” de Helmut Kirst; “Ah King” de Somerset Maugham; “Fiesta” de Hemingway; “Focus” de Arthur Miller; “A Mãe” de Maximo Gorki; “A Filha do Pároco” de George Orwell. E muitos outros que poderia enunciar. Sem esgotar o conjunto das suas edições aqui ficam alguns títulos que, nesta época de quase confinamento em que nos encontramos, talvez sejam boas sugestões de leitura.
Aqui deixo estas curtas linhas à laia de homenagem a uma grande personalidade que me priveligiou com a sua desinteressada amizade. Linhas que já poderia ter escrito há muito tempo, ainda em vida de Figueiredo de Magalhães. Não o pude fazer mas aqui fica a vénia devida a um grande espírito da cultura do nosso tempo. Para que outros, mais novos, as possam ler.
Gostei da sua frase «a vida é assim : atrasa-nos…..»é que gosto de escrever e ando a criar um livro bem diferente de um artista que me ensinou muito, o meu pai, viveu no séc. XX e deixou obra, quer no cinema quer na rádio e até na TV. Procuro agora uma editora, ou até apenas uma gráfica mas espero, dar vida a este projeto a que me propus, ainda que tardiamente…
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Não desista do livro. Se precisar de uma editora pode recorrer à Colibri. Obrigado pelo comentário.
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Não nunca iria desistir sei que o pai teve uma vida tão criativa que não deve ser esquecido. Aguardo o orçamento da gráfica através do editor.
Também aguardo que a Anima me permita ver os filmes de Américo Leite Rosa que foram lá entregues.
O meu trabalho tem que estar muito correto e de acordo com todas as fontes através das quais me documentei.
Obrigada mais uma vez pelo seu incentivo.
Vai gostar de conhecer o percurso de um humanista, sem Dr. mas com um conhecimento muito abrangente quer em História, quer na escrita, , sabia de cinema a sua arte maior, de rádio, pintava aguarelas que não é fácil, e tenho excelentes fotografias.
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Gostei muito de a ler. Gostava de conhecer a obra do seu pai. Cumprimentos.
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O meu projeto livro começou em 2017 com interrupções. Mas O Pai teve uma vida tão criativa que não deve ser esquecido: fez caricaturas, trabalhou em jornais, na exposição do Mundo Português como decorador e a partir daí no cinema; decorador ator realizador. Depois na rádio RCP na Parede depois em Lisboa, RR. organizou Leilão de quadros para Leilão, quando a RR foi assaltada. E muito mais atividades.
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A editora Ulisseia é uma importante referência para mim e muitos livros que “herdei” dos meus pais eram da editora Ulisseia. E da Cosmo. Pela mesma via tenho todos os números da revista Almanaque que ainda hoje folheio com imenso prazer. Gostei de ler o seu artigo.
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Agradeço a sua leitura do nosso texto. A Ulisseia foi, realmente, um marco importante da cultura em Portugal.
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Bem merecida homenagem. Também tenho bons livros editados pela Ulisseia
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