A PAIXÃO DO VIOLONCELO

O violoncelo é um nobilíssimo instrumento musical que hoje faz parte de qualquer orquestra ou conjunto clássicos que se prezem. Pertence à antiga família do violino mas só veio à luz do dia nos princípios do século XVI. A sua adolescência enquanto instrumento foi relativamente atormentada e rodeada de alguma falsa “lascívia” pelo facto de a sua posição natural para ser operado era, e é, entre as pernas dos músicos. Ora na época em que o violoncelo irrompeu na vida musical, às senhoras, embora usando saias folgadas, a decência dos tempos nunca permitiria que a operação do instrumento lhes fosse eticamente autorizada. Só mais tarde, no século XIX, apareceram as primeiras e audaciosas violoncelistas (de entre as quais se destacou a portuguesa portuense Guilhermina Suggia, de ascendência italiana) que ultrapassaram as convenções eclesiásticas e censórias, desenvolvendo a prática do violoncelo, colocando-o na única posição em que poderia ser tocado. E assim foi e tem sido até hoje. Guilhermina Suggia, para além de executante famosa, foi professora de violoncelo e acabou por, pelo menos, dar indicações sobre um violoncelo que conheci. Foi há muitos anos, mas a recordação manteve-se. Um instrumento musical, ao longo dos anos, adquire vida própria e passa a ser quase humano. O instrumento passa a ter sentimentos, embora dócil, irrita-se e, sem qualquer dúvida, apaixona-se.

Numa das orquestras em que participou, o violoncelo reparou, de longe, na harpa. E de longe porque , de acordo com a distribuição normal dos instrumentos num conjunto orquestral, a harpa fica do lado oposto ao do violoncelo. A harpa é um instrumento de grande linhagem, de linhagem antiga. Tem a particularidade romântica de só se deixar tocar pelas mãos, pelos dedos, do instrumentista. É como uma diva de outras épocas em que o pudor ultrapassava os desejos, pelo menos em público. A harpa começou por ser tocada a solo em Gales, desde tempos imemoriais, e, mais tarde, em Inglaterra, desde a época vitoriana. À semelhança das humanas dos seus tempos a harpa cultivou a descrição, o recato, o pudor, a insinuação perturbadora dos sons mágicos das suas cordas, sempre manipuladas com doçura pela sua instrumentista. Curioso como a maior parte dos praticantes de harpa são mulheres. Há qualquer coisa de suave lesbianismo nesta curiosa dupla orquestral. Talvez tenha sido exatamente isso que despertou o interesse e a curiosidade do nosso amigo violoncelo. E não se sabe ao certo, mas talvez, por esse mútuo encantamento, a harpa terá passado a tratar por “cello” o nosso simpático violoncelo. Um diminutivo terno e romântico que se manteve desde o século XVII ao século XIX, quando a harpa e o “cello” passaram a ser usados com frequência por grandes compositores desses tempos, como Berlioz, Strauss, Mahler ou Elgar.

A surda e freudiana paixão do violoncelo pela harpa manteve-se por largos anos. Quando a orquestra tocava no seu conjunto, os sons de um e de outra confundiam-se ou integravam-se nas harmonias que os rodeavam. Mas era nos solos, de um ou de outro, que essa paixão sonora mais se fazia sentir. Ouviam-se com respeito mútuo, os seus instrumentistas talvez cruzassem olhares por sentirem que dos seus instrumentos emanavam pulsões apaixonadas, quase humanas, que os dispensavam, grande parte das vezes, de muito se concentrarem nas partituras a executar. A harpa ou o “cello” faziam-no sozinhos. Era a paixão deslumbrada do violoncelo encontrando-se, de longe, com a púdica e hesitante postura da harpa. Como se ela exibisse um atrevido decote medieval sem que nada mais resultasse do que os anseios eternos do “cello”. Uma paixão correspondida mas nunca concretizada.

Os tempos passaram mas a fluidez musical do violoncelo foi-se deteriorando. Mas a paixão, não. Acabou abandonado, quase desprezado até à morte. A harpa envelheceu também, retirou-se e foi substituida por outra muito mais fulgente, mais moderna e audaciosa. Esta, agora, muito mais desafiante para o novo violoncelo que, segundo consta, nunca lhe dedicará a mesma paixão que o seu antepassado viveu.

Enfim, tal como se diz, por vezes: “Nos tempos em que os animais falavam”, não será grande pecado imaginar o tempo em que o violoncelo se apaixonou. E, ainda por cima, por uma harpa…

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