Há décadas que se escreve, se disserta, se elogia a nobreza do Desporto e a sua reconhecida capacidade na união de praticantes, o seu insubstituível papel na educação, na saúde física e mental, na sua apregoada capacidade de juntar povos e criar-lhes convivências. Para isso, em todo o mundo, o dirigismo (associativo e federativo), a arbitragem são instrumentos essenciais para a boa e livre prática dos atletas das centenas de modalidades que os ocupam nos seus tempos de lazer ou profissão. É esta a substância teórica do Desporto. Não é esta, infelizmente, a substância prática de algumas modalidades e situações.
Arrepiemos caminho e aproximemo-nos, apenas, do futebol. Diz-se, e é verdade, que o futebol atual é mais indústria que desporto. Não se lhe retire a sua bondade desportiva mas reconheça-se a sua essencial faceta de indústria em todo o mundo. Não há modalidade que tão obscenamente conviva com verbas de honorários, transferências e investimentos como o futebol. Criou-se um mundo à parte em que autocratas e fundos milionários compram clubes de futebol por todo o mundo para, através deles, escoarem dinheiros cujas origens tantas vezes se ignoram. Criou-se uma nova classe de empresários comissionistas que, por toda a parte, se fazem representar entre os mais poderosos do universo. É um mundo diferente, não sei se novo, mas poderoso, muito poderoso. A modalidade deixou de se orientar pelas maiores organizações de associativismo desportivo nacionais e internacionais e criou, ela própria, as entidades pelas quais se rege. Embora o futebol não deixe de fazer parte de organizações reconhecidas, como confederações e comités olímpicos e tenha assento nas suas assembleias, as regras que delas emanam são-lhe, de todo, indiferentes. O mundo do futebol é outro e o seu poder é já tão grande que ninguém se atreve a contestar ou discutir as suas decisões . Isto passa-se em toda a parte e entre nós também.
Milhares de jogadores vagueiam pelo mundo à procura se um lugarzinho confortável nesse oásis de que ouviram falar. Mas nem sempre o jeito ou a arte os ajuda nessa arriscada aventura. E muitos deles vão sobrevivendo mal, muitas vezes com baixíssimos salários, bem diferentes dos que sempre estiveram habituados a ler nos jornais. E vão fazendo o que podem, vão-se portando bem porque, no fundo, vivem de um salário irrisório a que George Arnaud chamou, no seu famoso romance de “O Salário do Medo”. Por curiosa analogia George Arnaud escreveu, na introdução desse seu livro, uma notável chamada de atenção: Não queiram escontrar neste livro aquela exatidão geográfica que não passa de um logro: a Guatemala, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá!” Tal como tudo o que se possa dizer dos locais onde se passam estes fenómenos futebolísticos: “É mentira, não existe. Eu sei, eu vivo lá!”
E tudo acontece neste nosso país que não existe: turbas que se degladiam, ataques e assaltos organizados em redes sociais, dirigentes com guarda-costas e prosélitos “ganguificados” que agridem quem lhes apetece, insultam soezmente quem, mais ousadamente, os critica, corporizam complicados processos judiciais que acabam sem punição por escassez ou inexistência de provas. Percebem-se os “jogos de tabuleiro” com nomeações de intervenientes que acabam por exibir os ocultos desempenhos com que, não se sabe em troca de quê, se comprometeram.
É este o terrível espetáculo que se vai vivendo , alienadamente, por toda a parte. Cada um vai, claro, defendendo as suas cores preferidas mas já ninguém tem, por esta modalidade, a consideração desportiva que sempre desejou ter. Valham-nos as seleções nacionais porque aí, pelo menos, puxam todos para o mesmo lado. E o silêncio das maiores instituições desportivas e politicamente tutelares do Desporto é ensurdecedor. Pouco ou nada se diz. É o medo. Não, neste caso, o “salário de medo” mas o medo da represália, do contra-ataque demolidor, da falta de pudor de que esta sociedade se impregnou. O medo de um poder obsceno, latente, engravatado que não tem amigos, só fiéis.
Chegou a altura de alguém ter a coragem de dizer que o “rei vai nu”. Seja qual for o rei ou, mais corretamente, o bobo dessa falsa corte.
Miguel Torga escreveu, sem medo, em 1954, uns versos lapidares:
Acuso-te e protesto. É manifesto Que existe malvadez ou má vontade! Com a mais humilíssima humildade, Requeiro, peço, imploro... Mas trago às costas esta maldição De sofrer com razão ou sem razão, E de não ter alívio nas lágrimas que choro! Sozinho na trincheira, vou cantando, E o inimigo ouve-me, de lá... Ouve, e não sabe quando O poder do meu fogo acabará.
E uma triste verdade : o futebol profissional, mais fora das 4 linhas que dentro destas, tornou-se um espectáculo indecoroso, baseado num desporto mas que nada tem a ver com comportamento desportivo. Dizem que a ganância tudo corrói , o que neste caso não anda longe da verdade
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Análise clara, correcta e fotografando bem a relidade !
Só espero, e lutarei por isso, que o MEU RUGBY ( MEU E DE MILHÕES DE GENTES !!! ) NÃO SE DEIXE INFECTAR. Com este exemplo do canelão ( palavra inventada pelo Pai do C. Ayala Botto ) julgo estarmos com Pfizer, Moderna, Aseneca, J0hnson etc no nosso ADN de gentlemen players of a rufians game. So help us God…
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