DIA DA CRIANÇA

Hoje é Dia da Criança. É o Meu Dia. Com todos estes anos passados sinto muitas vezes, lá bem no fundo, vontades e apetites de criança. De dizer e fazer disparates, chatear os mais crescidos, fazer perguntas incómodas sabendo, agora de ciência certa, que não vou ter as respostas. Acho que todos nós reservamos, algures lá dentro, uma caixinha fechada com todos os gostos de criança. E essa caixinha fechada vai assistindo, sempre fechada, às tropelias das nossas vidas, às alegrias, aos desgostos, aos bons e aos péssimos momentos. Mas no intervalo de tudo isso, abre-se e tempera-nos com muito do que por lá ficou guardado. Depois fecha-se de novo e deixa-nos ficar com o ar sensato que tantas vezes precisamos de afivelar. E deixa-nos, principalmente, com o desejo indomável de que se abra outra vez para podermos dizer ou relembrar coisas que nos deram prazer, alegria e o direito inimpugnável de dizer disparates e pregar partidas saborosas.

É nesses momentos de caixa aberta que nos lembramos dos nossos primeiros sapatos de atanado, das alpargatas fabricadas no Calvário (hoje substituidas por luxuosos modelos de marca), dos fundilhos nos calções que reforçavam o inexplicável desgaste a que essa peça de vestuário era sujeita. Os sapatos ou botas de atanado que mal suportavam uma semana sem um retoque de sapateiro, depois de tanto pontapé na trapeira (não havia bolas CR7). Vivia num sítio onde havia medronheiros, cujas bagas, maravilhosamente vermelhas e ásperas no exterior, deglutíamos com avidez sem medo de contaminações nem das famosas bebedeiras. Foi por essas alturas que ganhei a minha primeira ( e julgo que única) trotineta com a qual fiz tremendos percursos em terra batida, salteada, amontoada com inesperadas raízes atravessadas que me obrigaram, não raras vezes, aos pensos nos joelhos. Era a água oxigenada, tintura de iodo e o mercúrio-cromo. Coisas que já pouco se usam ou foram substituidas. Foi, no meio desses vistosos trambolhões, que íamos aprendendo os primeiros palavrões, ditos em surdina para não sermos penalizados. Mais tarde veio a época do grande dilema: quando substituir os calções pelas calças à golfe. Não havia jeans. Mas era o primeiro passo para a adolescência, para as calças compridas. Bolinhas de papel salivado, projetadas com perícia, exigiam réplica imediata dos mais audazes. Partidas aos professores também faziam parte dessa ementa de juventude: fatias de queijo dentro do livro de ponto, rolhas de cortiça a entupir o tubo de escape do carro velho de um professor. As carteiras, em aulas de 40 alunos, eram duplas e todos nós tínhamos um “parceirete”. Nos pontos dava para copiar umas coisinhas… Havia os bonecos da bola (como agora estão a reaparecer) que eram colados numa caderneta. Quem conseguisse completar a caderneta recebia uma bola a sério. Claro que faltava sempre o boneco mais difícil que o lojista habilmente surripiava antes. Surgiram nessa época os matraquilhos (que ainda existem) e os campeonatos eram duros. Havia o jogo do prego e o do “ring” na praia. Alugavam-se, por um dia, as revistas de banda desenhada (Gibi e Guri) que nos faziam heróis de curto prazo. Surgiram, entretanto, as revistas de banda desenhada portuguesas, o Mosquito, o Diabrete, o Cavaleiro Andante, percursores de tantos outros que chegaram a gerações seguintes. E havia, de quando em quando, umas tardes de folga das aulas para se ir até ao 2º balcão (já não há) de um cinema para ver o filme mais desejado do momento.

São essas brincadeiras de criança que se recordam no dia de hoje. As mesmas brincadeiras que trespassaram as épocas e a que assistimos de novo com filhos e netos. As mesmas corridas desbragadas, os mesmos “granéis” à molhada, os mesmos atrasos às refeições, as mesmas anedotas sobre os professores. Nessas idades de criancice fazem-se os primeiros amigos, em geral os amigos para a vida. A partir de certa altura já é difícil fazer amigos, fazem-se conhecidos.

Estas crianças, estas criancices são eternas. As traquinices e liberdades que praticam exigem que os protejamos e os acautelemos. Acabam sempre por recolher à proteção dos progenitores procurando, por algum tempo, o repouso “de caserna”. Por isso sofremos tanto por eles. Por isso nos recolhemos, em silêncio angustiado, quando nos mostram, quase sem pudor, o sofrimento de crianças por todo o mundo. Muitas delas não resistem, desaparecem sem nunca chegar à idade de saber que têm uma caixinha lá dentro para lhes adoçar as vidas nos interstícios dos seus sofrimentos. Dia da Criança, sim, de todas as crianças, incluindo as que vivem dentro de nós. Alguém disse que num momento, que pensava ser o seu último, lhe ocorreu a sua vivência de criança. Sobreviveu e passou a gostar mais de si próprio. Lembrou-se que tinha sido criança.

É fundamental que neste Dia da Criança nos lembremos de todos, dos que, por todo o mundo, correm e vão à escola e dos outros que o destino não quis que passassem de Crianças.

Dos milhares de poemas que, ao longo dos séculos, se escreveram sobre crianças ocorreu-me respigar estes pequenos trechos:

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
(Alberto Caeiro - 1946)

Eles não sabem nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
(António Gedeão - 1956)

Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados.
Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.
Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.
(António Gedeão - 1961)

O urso grande de peluche
que dei ao meu filho
está cada vez mais pequeno!
(Daniel Maia-Pinto Rodrigues - 2005)



Bom Dia da Criança!







Um pensamento sobre “DIA DA CRIANÇA

  1. Muito bem, Manuel José! Eu não poderia ter escrito melhor e subscrevo as tuas palavras. Tenho um texto escrito, mas não editado, sobre a minha infância que um dia te darei a conhecer. Grande abraço

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