Há um momento na História da Ucrânia verdadeiramente relevante: a “Grande Fome” ou a “Fome do Terror”, de 1932-1933, com os seus quatro milhões de mortos de um total de sete milhões que, na altura, existiam em toda a União Soviética. As regiões do centro e leste da atual Ucrânia foram as mais atingidas. A parte oeste, onde se encontra Lviv, escapou à fome por, na altura, se encontrar na Polónia. Também Kouban, no Cáucaso do Norte, com população maioritariamente ucraniana. Mas, de acordo com registos históricos fiáveis, os números são aterradores: ao norte, na região de Tchernihiv, houve 254.000 mortes; na região de Kiev 110.00; a sudoeste, na região Vinnytsia, 545.000; na região de Karkhiv 1 037 000; na Moldavia 68.000; na região de Odessa 326.000; perto do mar de Azov 368.000 e na região de Donbass 230.000. A quebra demográfica desta última região foi compensada pelo envio de russófonos num quadro de desenvolvimento industrial previsto para esse plano quinquenal.
Isto tudo se passou no tempo de Staline. Vladimir Putin quer ser o seu herdeiro e está disposto a recompor o que lhe foi ensinado e lhe foi transmitido como o grande império soviético. Para tal deixou de respeitar acordos e alianças. Transformou-se num ditador fascista sem escrúpulos (talvez o tenha sido sempre) que desconhece a humanidade, que ignora e despreza as vidas que elimina metodicamente atacando hospitais, escolas, centros de congressos, tudo o que lhe interessa fazer desaparecer.
Tony Judt, um dos principais historiadores e pensadores contemporâneos escreveu o seu último livro em 2010, com o título “Um Tratado Sobre os nossos atuais Descontentamentos”, livro que foi publicado após a sua morte que ocorreu nesse ano. Ele diz na sua outra obra Postwar : Para os russos, a Europa Ocidental permaneceu o que tem sido ao longo dos séculos – um contraditório objeto de atracção e repulsão, de admiração e ressentimento.
Mas não deixa de referir, na primeira obra atrás citada, o célebre parágrafo da obra de Karl Marx “O 18 do Brumário de Napoleão Bonaparte” que diz: Todos os factos e personagens de importância na História do mundo acontecem duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” . E acrescenta Tony Judt: “É uma visão que tem muito que se lhe diga, mas não exclui a possibilidade de até as tragédias se poderem repetir. Os comentadores ocidentais que comemoraram a derrota do comunismo previram confiadamente uma era de paz e liberdade. Deviam ter imaginado…”
Mas regressemos ao tema base do nosso texto: o Holodomor. Quem se quiser dar ao trabalho de consultar a Wikipedia (o que hoje praticamente todos nós fazemos) e procurar o “Histórico Russo: Da Guerra e da Paz” ficará suficientemente identificado com as razões pelas quais os ucranianos odeiam genuinamente os seus “irmãos” russos. Nessa enorme descrição (que não vou transcrever) o império russo da era moderna começa em 1700/1721 com a Grande Guerra e Anexação da Estónia e da Letónia. Até hoje a sua história é um palco de invasões, ocupações territoriais, violações, massacres, supressões de revoluções em países livres que tinham estado integrados na anterior União Soviética, até ao estado atual de tentativa de reconfiguração do império com um novo “Staline”. O após II Guerra Mundial pareceu transmitir aos ocidentais uma certa aceitação dos modelos democráticos com que tinham convivido durante a guerra. Nada mais falso. Esse aparente adormecimento teve a ver com o susto que apanharam quando o exército alemão os invadiu para lhes roubar território. Mas o “General Inverno” impediu os alemães de prosseguirem os seus ataques e os “Aliados” venceram a guerra. A Rússia era um desses aliados. Anos passaram em que o ocidente estabeleceu com eles acordos e projetos económicos (muitos deles baseados no fornecimento de energias) pelos quais hoje se penalizam e tentam encontrar alternativas viáveis à dependência em que se envolveram. Fica portanto claro o parceiro com que a Europa se debate.
Mas que se passou em 1932/1933 na Ucrânia? Desde sempre o poder soviético considerou o campesinato como uma classe com interesses contraditórios aos da imaginada “ditadura do proletariado” (aberração que ainda se proclamou entre nós logo após o 25 de Abril de 1974). O campesinato era pois uma fonte de riqueza a eliminar sem dó nem piedade para evitar que ele viesse a reconstituir o capitalismo. Staline engendrou a possibilidade de uma “certa fome artificialmente organizada” para obter, com a venda do trigo, as divisas necessárias à industrialização. Mas os camponeses ucranianos opuseram-se fortemente às requisições dos seus cereais o que levou Staline a colocar a Ucrânia sob forte regime militar, isolando-a da Rússia. Foi desde aí que o poder soviético pôs em execução do seu plano de irradicar a cultura nacional ucraniana. Em 22 de Janeiro de 1930 o Pravda anunciava que “um dos objetivos da coletivização é a destruição da base social do nacionalismo ucraniano”. A fome atroz sofrida pelos ucranianos chegou a provocar casos de antropofagia o que impôs a necessidade de editar um anúncio oficial dizendo: “Comer o seu filho é um crime”. Tratou-se realmente de um genocídio. Os fornos de pão foram sistematicamente destruidos, foi proibida a venda de pão aos camponeses e a lei de 7 de Agosto de 1932 decretou a prisão de 10 anos, podendo ir até à pena de morte, quem tentasse roubar alimentos para comer. Esta violência totalitária e de genocídio destruiu centenas de aldeias e provocou, em média, 15.000 mortos por dia. Uma personalidade política francesa da época, Édouard Herriot, radical-socialista, fez uma visita à URSS em 1932 e visitou a Ucrânia acompanhado pela polícia política. Quando regressou fez a famosa declaração : “A fábula da fome na Ucrânia”!
Acham que os ucranianos poderão ter alguma simpatia pelos russos? Depois da sua independência a Ucrânia sempre teve um comportamento neutral e de cuidadoso relacionamento diplomático. Eles sabiam que o que se está agora a passar poderia, realmente, acontecer. E aconteceu. Os ucranianos odeiam os russos. Por isso tudo têm feito para se juntarem aos países ocidentais. E agora, neste turbilhão de guerra, combates e mortes, todos os países do mundo civilizado se uniram na censura à invasão e se vêem obrigados, perante os tratados políticos que ao longo dos anos foram assinados, a remeter-se às duras sanções económicas para que se evite uma terceira guerra mundial. O problema é que ninguém sabe como se comporta o “Urso dos Urais” perante todas as ondas de solidariedade que ele, como czar-ditador, não esperava.
E assistimos a professores, diplomatas, políticos, intelectuais da maior envergadura em todo o mundo a dizer que “é preciso ter cuidado e arranjar uma via negocial para não encurralar a besta. Deixar-lhe sempre uma saída para evitar o pior.”
É assim o mundo. A violência sempre imperou sobre a justiça. E essa, a Justiça, não pode nem tem cumprido o seu dever como devia. É como se não existisse. E a ausência de Justiça é a derrocada das civilizações.
O mundo não está livre de outros Holodomores!
Não deixa de ser terrível verificarmos que as nações democráticas da Europa, para não verem reduzido o seu bem-estar económico continuam a ter de negociar com regimes ditatoriais e, no caso da Rússia de Putin, sanguinário.
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Uma pergunta que não se afasta dos nossos pensamentos: Como é possível, tudo isto acontecer, quando todo o mundo se esforça por alcançar uma paz fraterna e em segurança, em que o intercâmbio o torna mais apetecível ? Talvez a fantasia, que nos faz esquecer que a loucura pelo poder não passa com uma simples receita de comprimidos para dormir. E Holodomor, como o Holocausto, além das milhares deportações para a Sibéria, tão perto uns dos outros em termos de calendário, são a memória e o exemplo triste de que muito mais ainda pode vir a acontecer…! Formas monstruosas de travar os caminhos da independência política, intelectual e cívica, dos povos que tiveram a desdita de ter más companhias…!
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Boa lição de História que nos ajuda a compreender melhor este terrível conflito !
Obrigada . Um abraço
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Optima pesquisa historica !!!!!!! Parabèns !!!!!!!!! SLAVA UKRAINA !!!!!!!
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