“A Cena do Ódio” é um fantástico poema de Almada Negreiros que, de uma forma geral, todos conhecem. Almada Negreiros não era, como se sabe, uma pessoa fácil. Era ácido, mordaz e telúrico no que escrevia mas sempre temperou a sua obra genial de escritor, poeta e pintor com peças desenhadas com fantástico rigor geométrico e de sobriedade de cores que engalanam, atualmente, muitos dos espaços públicos e de cultura por todo o país.
Escreveu a “Cena do Ódio” durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915. Dedicou o poema (com mais de 700 versos), segundo as suas palavras, “A Álvaro Campos como a dedicação intensa de todos os meus avatares”. Esta revolução causou-lhe uma violenta perturbação. O Movimento pretendia, como conseguiu, destituir o Presidente Manuel de Arriaga e substitui-lo por uma Junta Constitucional. Foi considerada a mais violenta manifestação militar em Lisboa no século XX tendo causado cerca de 200 mortos e mais de 1000 feridos. A revolta só terminou com a intervenção da marinha de guerra espanhola com o envio do couraçado España e com a correspondente reação das marinhas britânica e francesa que também enviaram contigentes navais para Portugal (talvez para nosso bem, na altura não existia a NATO).
Nada que se compare, claro, com o que se está a passar na Ucrânia. O “Monstro dos Urais” merece e revemo-lo em alguns dos versos da “Cena do Ódio” que não vou transcrever na totalidade (missão desnecessária) mas de que respigo alguns dos seus versos mais mordazes.
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Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-me a Vida por vivê-la
e só me deram uma!
Hão-de lati-la por sina!
Agora quero vivê-la!
Sou ruínas rasas, inocentes
Como as asas de rapinas afogadas.
Sou a Raiva atávica dos Távoras,
o sangue bastardo de Nero,
O ódio do último instante
do condenado inocente!
Vai vivendo a bestialidade da Noite nos meus olhos,
Vai inchando a tua ambição-toiro
‘té que a barriga te rebente rã.
Mudemos, no entanto de assunto, e falemos da grande arte russa, de grandes artistas e intelectuais que se oporiam ou ainda se opõem (os contemporâneos) aos dislates de um bem informado e programado louco ex-KGB que resolveu fazer aquilo que os tempos modernos já não toleram. Vem a talhe de foice falar, por exemplo, de Tchaikovski que, até à sua morte aos 53 anos, em 1893, nos deixou, a todo o mundo, composições como a Abertura de 1812, o Quebra Nozes, o Lago dos Cisnes, a Bela Adormecida, a Marcha Eslava, Romeu e Julieta, Concertos para Violino e Orquestra ou a Dama de Espadas; Tcheckov que, como médico, nos deixou contos maravilhosos de entre os quais se destacam os seus 4 clássicos: A Gaivota, Tio Vânia, As Três Irmãs, o Jardim das Cerejeiras. Ou Leon Tolstoi que nos deixou a Guerra e Paz ou Anna Karenina. Disse e escreveu Tolstoi já no fim da vida, minado pela doença : “Sabeis como morrem os camponeses? Há uma multidão de desassistidos porque não se chamam Leo Tolstoi. Porque não me deixam em paz e não vão cuidar deles?”
Mas entre os escritores russos contemporâneos vale a pena mencionar alguns que são reconhecidos pelas suas obras em todo o mundo e que não merecem o apreço do czar Putin nem eles lhe prestam créditos pessoais ou políticos. Lyudmila Ulitskaya é uma das escritoras russas contemporâneas russas com maior renome internacional.Formou-se na Faculdade de Biologia Estatal de Moscovo e trabalhou como genicista durante dois anos, altura em que foi despedida devido à disseminação de publicações ilegais. Só nos anos 80 publicou o seu primeiro romance. Vive, principalmente, em França. Vera Polozhkova é uma das poetisas mais brilhantes do mundo da artes atual e que, tal como Mikhail Shishkin opõe-se abertamente ao atual regime russo. Este último recebeu os três principais prémios literários da Russia: Bestseller Nacional, Big Book Prize e The Russian Booker Prize. Em 2013 recusou-se a representar a Russia na Book Expo, nos Estados Unidos, para não se associar ao regime. Desde 1995 vive na Suiça.
Tudo isto vem a propósito, como é evidente, do resguardo que é preciso manter entre as decisões políticas de um ditador fascista e o mundo cultural que teve origem no seu próprio país e cujas opiniões não o podem acompanhar, antes ou agora. Putin tem que ser julgado e hoje, no DN, Gordon Brown, antigo primeiro ministro Britânico e atualmente desempenhando os cargos de Enviado Especial das Nações Unidas para a Educação Global e Presidente da Comissão Internacional de Financiamento de Oportunidade Global de Educação, escreve um artigo fundamental com o título “O Processo Jucicial de Putin começa agora”. Diz ele que há um impulso global para reunir as acusações criminais contra Putin. Cerca de 140 juristas proeminentes e ex-líderes emitiram uma declaração de apoio à criação de um tribunal especial para a punição do crime de agressão contra a Ucrânia. Michelle Bachelet, a Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos anunciou que uma Comissão de Inquérito está a reunir a documentação necessária para a acusação de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão. A própria Agência contratada pela Russia no Tribunal Internacional de Justiça renunciou dizendo: Basta. Tornou-se impossível representar um país que despreza a lei tão cinicamente. O processo em curso pretende trazer de novo ao mundo uma esperança realista de que a justiça será feita e nossa humanidade comum reconhecida.
Tudo isto é difícil de alcançar sobretudo quando os interesses financeiros mundiais se atropelam sem soluções equilibradas à vista. Quando a humanidade se interroga ainda sobre o futuro das pérolas do património mundial como a Catedral de Odessa, a sua Academia de Artes, a sua Escadaria Monumental de Potemkin na qual foi filmada a nova rebelião de Odessa, fica-se na dúvida se a sensatez de um louco alguma vez existirá. Até aos patamares mais imprevisíveis e menos desejáveis.
Cá por mim, “poeta louco e cidadão de um deus menor”, sugeria que os milhares de drones atualmente utilizados para atacar o exército russo fossem desviados para Moscovo e emitissem, em altos sons e toneladas de decibéis, as músicas inesquecíveis do Lago dos Cisnes, do Quebra Nozes, da Marcha Eslava, do Romeu e Julieta, de forma ininterrupta, permanente, ensurdecedora. Talvez a fera abrisse uma janela do seu esconderijo e percebesse como o mundo encara esta terrível “Cena do Ódio”.
É assim a Natureza : um povo capaz de gerar tantos artistas e cientistas geniais, também é capaz de gerar loucos que chegam ao poder
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