UM HOMEM PARA A ETERNIDADE

Lembrei-me hoje, por razões dedutivas, do filme que titula este texto (na sua versão original inglesa, A MAN FOR ALL SEASONS), filme de 1966 que conta a história de Sir Thomas More, Lord Chanceler de Inglaterra do século XVI, que se recusou a assinar a carta dirigida ao Papa Clemente VII pedindo a anulação do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão para se poder casar com Ana Bolena. Recusou-se também a aceitar a denúncia do Juramento da Coroação e consagrar Henrique VIII como Chefe Supremo da Igreja Inglesa. Por todas estas posições suportadas pela sua profunda formação católica e defendendo as garantias incluidas na Magna Carta, Thomas More abdicou de todos os seus cargos mantendo, no entanto, o seu enorme prestígio junto da Igreja Católica. Apesar de cessar as suas funções o Rei nunca deixou de o perseguir, direta ou indiretamente, e acabou, com o apoio de Cromwell, de o levar a julgamento. Os juizes, também muito influenciados pelos círculos da realeza, acabaram por o condenar à guilhotina. As “estações” da sua vida nunca levaram More a desviar-se do que eram, na realidade, as suas convicções e do apostolado da sua vida. Foi realmente “A man for all seasons” mantendo a sua coerência e morrendo por ela. Um Homem para a Eternidade.

Vem isto a propósito de uma figura portuguesa de grande destaque, o Professor Adriano Moreira, que completou, recentemente, os cem anos de vida. Um homem que as últimas gerações portuguesas conhecem como brilhante professor universitário, professor de altos estudos militares, sábio humanista e Presidente da Academia de Ciências de Lisboa, antigo deputado e Conselheiro de Estado. Com uma inteligência brilhante e expressão fluente que deixou transparecer nas recentes entrevistas que concedeu pelo seu centésimo aniversário.

Os princípios públicos da sua vida revelam, no entanto, algumas flutuações de comportamentos que terão sido, há que aceitar, fruto dos tempos que se viviam. As suas posições sempre foram, de forma inteligente, justificadas com discursos anódinos que, no meio dos turbilhões em que se viu envolvido, sempre o fizeram passar incólume por essas tempestades. Foi um brilhante aluno de Direito e, nessa altura, porta-voz de algumas insatisfações que percorriam os corredores das universidades. Já como advogado, nos finais dos anos 40 do século passado, foi advogado de defesa do general Mendes Godinho que havia participado numa tentativa de golpe de estado contra o regime de Salazar. Por ter invocado o sigilo profissional no apoio ao general e à sua família foi preso na cadeia do Aljube durante dois meses onde se encontrou com Mário Soares que também por lá se encontrava. Foi a partir daí que mantiveram sempre um relacionamento cordial. Adriano Moreira foi, durante esse longo período, considerado um homem de esquerda. Salazar apercebeu-se disso e pensou que a inteligência de um homem da “esquerda suave” poderia ser-lhe útil nos seus desígnios políticos. E não hesitou. Em 1959 convidou-o para subsecretário de estado da Administração Ultramarina para, dois anos depois, ser Ministro do Ultramar. Salazar ter-lhe-á dito que “precisava de mudar de políticas” ao que Adriano terá respondido: “Acabou de mudar de ministro”. Os anos de 1961 e 62 foram os mais espinhosos da sua carreira política. Foi a erupção da guerra do ultramar que já havia anos que se anunciava. Em 1961 percorreu denodadamente Angola e Cabo Verde, sempre em representação do regime mas conseguindo materializar legislação importante para a época como foi o caso da abolição do Estatuto do Indiginato permitindo, dessa forma, que os naturais das colónias pudessem obter a nacionalidade portuguesa. Em Dezembro desse ano teve o caso da Índia relativamente ao qual apresentou lamentos pelo facto consumado. Num livro intitulado “Índia Portuguesa – Penhores do seu resgate” , da autoria de Alberto Feliciano Marques Pereira, edição de 1962, para além dos depoimentos do Presidente da República e dos mais importantes ministros de Salazar, Adriano Moreira, na qualidade de Ministro do Ultramar, escreveu um preâmbulo nos seguintes termos: “Um dos primeiros actos da invasão de Goa foi destruir a estátua do Infante D. Henrique. O simbolismo profundo deste vandalismo traduz-se na completa rejeição de qualquer mensagem do ocidente. Mas como a presença do humanismo que negam, onde está viva é no coração dos homens, o dia dessa destruição marca o início do calvário do espírito que vai seguir-se“. Declaração enviesada que diz tudo e não diz nada. Tudo o que veio a acontecer nada tem a ver com aquele douto preâmbulo. O livro é um “tratado” profundo do regime salazarista. Havemos que reconhecer que o depoimento de Adriano Moreira é sábio e esquivo no assumir de responsabilidades. Salazar percebeu que, apesar de tudo, aquele homem não lhe interessava e dispensou-o definitivamente. Em 1953, no entanto, o ministro do ultramar à data, almirante Sarmento Rodrigues, pediu a Adriano Moreira um estudo sobre o sistema prisional em Angola e Moçambique. Esse estudo foi premiado em 1954 pela Academia de Ciências de Lisboa. Foi um período em que se dedicou à sua missão pedagógica, com aulas e conferências diversas. Após o 25 de Abril foi saneado de funções públicas e exilou-se no Brasil. Regressou a Portugal em 1980 e envolveu-se de novo na vida política como candidato a deputado pela Aliança Democrática. Filiou-se no CDS e manteve-se no Parlamento até 1995. Em 2015 foi Conselheiro de Estado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Um homem inteligente, humanista, conhecedor da vida mas cuja coerência, ao longo de tantos anos, pode ser questionada. A ele parece-me que se aplica bem, em sentido oposto ao de Thomas More, o epíteto de “A Man for All Seasons”. Ficará o seu nome para a eternidade? O que se pode desejar é que faça muitos mais anos para lá dos cem que já celebrou.

2 pensamentos sobre “UM HOMEM PARA A ETERNIDADE

  1. Muito bom pedaço de História contemporânea. Desconhecia por completo o episódio da defesa do General Mendes Godinho e dos 2 messes na cadeia
    Lembro-me que a sua nomeação como Ministro do Ultramar originou na altura uma certa esperança – que se veio a revelar inconsequente

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  2. Um pouco de história contemporânea que muitos desconhecem. Pormenores da vida de um politico, que eu desconhecia e que sem o saber, desde sempre colheu as minhas simpatias. Pela sua personalidade, lucidez e inteligência. Pela forma honesta e avisada de expressar as situações politicas do país, nem sempre bem considerada por alguns, a somar aos cem anos de experiência de vida, e aos que ainda lhe restarão, muito poderemos aprender com ele…!

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