Ao falar de fronteiras neste texto, falo de fronteiras físicas, entre países, por exemplo. São conceitos a que nos habituámos e que fazem sentido para a maioria dos cidadãos. Claro que há outras fronteiras não físicas: científicas, conceituais, religiosas, até. Mas situemo-nos, por hoje, nas primeiras, nas físicas, entre países ou regiões.
E essas fronteiras têm sido alvo de larguíssimas disputas, convénios, tratados de pós-guerras. Mas o direito internacional (ciência que existe mesmo que muitos dela desconfiem) existe e consagra, de forma sólida, as linhas que dividem países, regiões, municípios, lugarejos, courelas e quintais. São fronteiras de posse, de vida, de privacidade (gostamos muito um do outro mas eu estou aqui e tu estás aí). Velho como os tempos, sábio por natureza. Houve um general que disse há anos (dos generais que zelavam pelas guerras): “As fronteiras não se discutem, defendem-se”.
Vem esta pequena introdução a propósito de um conto de autoria de um advogado e poeta encantador, nascido em Alvão, nas proximidades de Vila Real: Manuel Vaz de Carvalho. Foi publicada recentemente uma edição comemorativa do centenário do seu nascimento. Nascido em 1911 e falecido em 2011. Foi um Homem de espírito sagaz e de grande respeito e ternura para com os seus próximos, familiares e amigos. Como advogado escreveu um pequeno soneto de que extraio uma parte deliciosa:
Entrai, sede benvindos, Excelências!
Estou ao vosso dispor, a tempo inteiro.
Ponde a vossa questão, trazei dinheiro
Que a boa paga acalma as consciências.
Estou a mangar! Eu vivo atazanado
No meu tugúrio torvo, atafulhado
De leis, decretos-leis e portarias.
A todos dei o mais que soube e pude\
Esbanjando ao desbarato a juventude
Da qual me vejo ao fim, de mãos vazias!
É ele que nos conta o que lhe aconteceu com um processo que acompanhou. Tratava-se de um aldeão de Cotorinho, junto à cordilheira do Marão. “Certa tarde de Agosto, primeiros dias de férias judiciais apareceu-me o Senhor Cotorinho com o seu cajado e tirando o chapéu com um ar bondoso. Era dono de um prédio rústico que fazia margem com um ribeiro de águas perdidas, provindas de regueiros da serra. Desde sempre, uma poça à laia de açude, enregueirava as águas do seu prédio e prédios vizinhos a juzante do seu, aproveitada em horas sabidas e respeitada pelos antecessores. Mas sucedia agora que um vizinho, que possuia um prédio a montante, colhia e enregueirava toda a água para um outro prédio distante, consumindo em proveito próprio toda a água visivelmente pública e incluida em direito de marginalidade. Desta forma, o seu prédio estava em seca. O Senhor Cotorinho pretendia assegurar-se do seu direito à água e se o desvio do vizinho ofendia ou não a lei. Fomos visitar o terreno e o Senhor Cotorinho tinha razão e disso o informei. Mas disse-lhe também que os tribunais estavam encerrados e só depois das férias se poderia levar a questão a juízo.
-Bem, se a lei está do meu lado e eu fico de seca… Ó Senhor Doutor…. e se eu lhe desse umas porradinhas?… -Ó Senhor Cotorinho, isso é que não! Não se meta em sarilhos piores que a água… Essa lutas podem sair caras e nada resolvem… Aconselhei-o: abstenha-se de conflitos à mão e tenha calma. – Ó Senhor Doutor mas o gado não vai ter para beber… e se eu lhe desse umas porradas, bem vê, talvez aquele larápio tomasse juízo… – Não faça nada até abrir o tribunal. E o homem saiu.
Passados uns dias bate-me à porta o Senhor Cotorinho com a cabeça empanada com ligaduras, um braço meio pendurado, a rir-se, entrou e disse-me: – Ó Senhor Doutor, tive um “conflagrante” com o meu vizinho à conta da auga, intimei-o a tapar a mina de sugagem clandestina (como o Senhor Doutor me informou do meu direito) e, palavra puxa palavra, engalfilhámo-nos, ele com um sacho, eu com o outro, mas o meu resvalou-se-me na cabeça dele e no braço… e queria pedir ao Senhor Doutor o favor de ir ao hospital indagar como está o meu vizinho… porque eu puxei talvez demais…
Fui ao hospital e o vizinho tinha tido uma cirurgia de trépano, com risco de vida. Foi no que deram as porradinhas, porradecas e porradas, sem honra nem glória e sem solução do conflito. Abriu o tribunal e foi tudo para inquérito penal. O Juiz, homem ponderado e sabido, um humanista, exarou as razões fundamentais e, pela idade avançada dos litigantes, acabaram ambos com pena suspensa.
No final do julgamento perguntei ao meu defendido: – Então, vamos propor o caso das águas, para terminar o diferencial?… Ó Senhor Doutor, eu bem dizia, já não é preciso tribunal, o ladrão nunca mais foi ao talhadouro – arreou!
Abençoadas porradinhas, porradecas e porradas! E pensava eu que sabia muito da lei das águas…”
Claro que este delicioso conto de Vaz de Carvalho vem, por analogia, lembrar-me o que se passa na Ucrânia com o “ladrão” do Putin. Os tribunais e as leis são muito bonitas e civilizadas mas, para gente que atravessa fronteiras, rouba terrenos, tortura e mata cidadãos estrangeiros, à semelhança com o que se passou com o Senhor Cotorinho, a coisa só lá vai com umas porradinhas, porradecas ou porradas. O problema é que, neste caso, a luta de sachos já não chega. Tem que haver outros apetrechos poderosos, caros e muito perigosos para os outros vizinhos. E se um dia tudo isto fosse a tribunal (coisa de que toda agente duvida) haveria testemunhas para todos os gostos e a coisa não se resolveria como, aliás, já todos os “estrategas” andam a confessar. Aliás, anda por aí alguma gente que acha que o Putin, coitado, é capaz de ter razão…
É pena que o o Senhor Cotorinho não tenha poderes para resolver o assunto com próprias mãos. Levando um sacho, claro!