Lembro-me, desde sempre, e já lá vão umas décadas, de o Natal ser sempre uma festa basicamente de família, de reencontros familiares, mais de solidariedade do que por forte convicção religiosa. O pequeno mundo em que fui vivendo e o grande mundo a que fui assistindo na comunicação social sempre me deram o conforto de que a paz era a essência da época. E essa convicção não era só minha, era também a de todos com quem tive oportunidade de me relacionar. Os presépios, as luzes decorativas das cidades, a sofreguidão das multidões a invadirem todas as lojas do mundo transmitiam e transmitem uma mensagem de sorrisos, de alegria, de excecional, embora temporário, afastamento da realidade. Essa tal realidade que, nesta época tão celebrativa, acaba por nos vir à memória e nos confrontar com os dramas indescritíveis e lacinantes de milhares que, por esse mundo fora morrem de fome, de desastres naturais, da inenarrável brutalidade das guerras. A religião, todas as religiões, não conseguem temperar ou conter a vaga de irreprimível criminalidade que domina e controla as sociedades. O nosso Natal, o que se vive neste país, tem uma origem judaico-cristã muito bem definida que enquadra os mais crentes, os menos crentes ou os crentes assim-assim e os transporta para a grande paz familiar e solidariedade social. No meio de toda este deslumbramento temporal muita ajuda solidária acaba por ser realizada. É essa a grande virtude da época.
O problema é que os deuses, sejam de que crença forem, acabam por “fazer vista grossa” a todas as mortandades diárias que nos afligem as almas : as tribos dizimadas por todo o continente africano e asiático; as guerras que, sem motivos nem notícia prévia, se desencadeiam promovidas por loucos conquistadores; os curdos assassinados em plenas ruas de Paris e as orgias de violência que logo se seguem; os autocratas que, à luz de falsas democracias, violentam as liberdades físicas e sociais dos seus concidadãos; as mulheres que são mortas pelo simples facto de serem mulheres e que, também por isso, não podem receber educação nas escolas; os dirigentes mundiais que roubam, que instilam a revolta, que mistificam a verdade e a dissolvem em tudo o que possa provocar desconfiança, descrença, má fé assistindo-se, portanto, ao derramar do ódio e de tudo o que se oponha à paz .
Bem se esforçam as igrejas e os seus maiores em proferir palavras de conciliação, de boa vontade, de fé e de paz. Quase que se pode dizer “em vão”. As pessoas, muito legitimamente, agarram-se às suas crenças com a esperança de que os seus deuses lhes dêem o que ambicionam. Mas cada vez mais, por toda a parte, se verifica que a política pode dar mais paz que as aspirações e solicitações virtuosas que se dirigem aos deuses. De qualquer religião ou de qualquer parte do mundo.
A Paz do Natal, de todos os Natais, passa por nós, escolhendo, sempre que seja possível, os políticos que ofereçam mais garantias de compreensão, justiça e solidariedade social. Não podemos escolher o Papa (no caso do mundo católico) e apercebemo-nos, na frustração subliminar aos seus discursos e constantes apelos de que a Paz que o mundo seja salvaguardada, de que não é por essa via que a paz exterior (não a interior de cada crente) se concretiza.
Somos nós todos, com os nossos presépios, com a solidificação das famílias, que poderemos contribuir para a Paz do Natal que desejamos. Do nosso e dos natais de todo o mundo mesmo que, por esse outro mundo, os natais tenham outros nomes.
O problema é que o mundo é tão complexo que não se arranja forma de prevenir todas as desgraças a que, arrepiadamente, assistimos.
Bom Natal para todos e, sobretudo, com Paz.
Um tema que nos faz recuar ao tempo em que tudo nos parecia ser possível. A ingenuidade própria daquelas idades, que nos fazia ver o mundo a cores suaves e de forma diferente. O cinema em tecnicolor, que se aprontava a apresentar filmes próprios desta quadra natalícia, enchendo-nos de felicidade, onde a bondade, a justiça e a tolerância, eram sempre o mote principal do filme, que tanto nos entusiasmava e nos fazia acreditar vivermos num mundo possível. O mundo real era outro, bastante mais distante dos nossos pensamentos, e bem mais perto do que sabíamos…!
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