O 18 DE DEZEMBRO DE 1961

A maior parte da população portuguesa não sabe o que se passou no dia 18 de Dezembro de 1961. Mas talvez valha a pena relembrar que foi nesse dia que os territórios da Índia ( Goa, Damão e Diu), sob o domínio português, foram tomados pelas forças militares indianas. Foi o que se chamou de “a invasão indiana” na política e nos textos portugueses, ou a “libertação dos territórios” segundo a política e os textos indianos.

Foi, à luz da época, um crime político e militar conduzido e imposto por Salazar, à data Presidente do Conselho de Ministros com a pasta da Defesa. Muito se tem escrito e publicado sobre esses acontecimentos mas a comunicação social de hoje ignora, olimpicamente, qualquer referência a esta data. E é pena, porque alguns dos que viveram, localmente, a ignomínia desses dias ainda estão vivos (talvez não muitos) e poderiam sentir-se reconhecidos por essas pequenas referências. Ou até comentarem utilmente, sem acrimónia, os momentos que viveram. A isso chama-se História. Mas o “arrastão” dos anos e dos responsáveis apagaram da memória coletiva a importância daquela data para a boa compreensão das evoluções históricas do nosso país.

Disse Salazar, num discurso pronunciado na Assembleia Nacional de 3 de Janeiro de 1962: “Com uma superioridade em homens de pelo menos 1 para 10 e, em material, muito mais…. enviei uma última mensagem ao Governador-Geral e escrita sabe Deus com que amargura na alma, que o factor arbitrário das forças de ataque havia de revelar-se sempre no final com grande desproporção.”

O que Salazar nunca perceberia é que o país (citação de Carlos Matos Gomes) mergulhava num período fulcral da História de Portugal da segunda metade do século XX, quando o regime instaurado pelos militares em Maio de 1926, e de que Salazar se apropriou, começa a abrir brechas que o levariam à destruição. O ditador deixara de perceber o que se passava à sua volta.

Foi com esta desproporção de forças que os comandantes dos navios da Armada na Índia receberam a última ordem do Comando Naval: No caso de ataque armado por parte da União Indiana resistir até ao fim. Em caso de situação completamente perdida afundar o navio. Rendição absolutamente intolerável. Espera-se da Marinha honroso comportamento como é seu timbre”.

Viveu-se um ponto crucial da História , em que os chefes desmerecem os seus soldados, invocando o dever de eles lutarem e de morrerem, mas esquecendo a sua obrigação de lhes darem os meios para combaterem em condições de razoabilidade, isto é, em condições de poderem cumprir as missões que lhes atribuiram. (Citação de C. Matos Gomes).

Sentado à sua secretária da casa de S. Bento, com a manta de lã a proteger-lhe os joelhos dos frios de Dezembro, os pés junto à braseira, envia a ordem à guarnição militar da Índia que oferecesse resistência até ao “sacrifício total”, com a célebre comunicação que “da Índia só esperava militares vitoriosos ou mortos”.

E é nesta situação que os comandantes carregam sobre si todo o peso da condição militar. Todos eles têm de decidir mas, como instrumentos de decisão, dispõem apenas dos seus valores éticos e dos inculcados pela sua instituição. Têm as vidas dos seus homens nas suas mãos, têm sobre os ombros o peso do passado mas, mais do que isso, têm a enorme responsabilidade do futuro. É um momento decisivo, é um momento da vida e da morte.

Como seria de esperar durante aqueles acontecimentos houve mortos (felizmente não muitos), muitos militares em campos de prisioneiros e outros que, de acordo com os tais valores éticos atrás enunciados, se recusaram a ficar prisioneiros. Depois de muitas e diferentes peripécias todos acabaram por voltar a Portugal, alguns recebidos pela PIDE antes de se apresentarem aos seus comandos. Os que mais tarde chegaram, depois de meses no campo de prisioneiros foram rapidamente dispersados pelo país para evitar perturbações de acolhimento. De um regime mesquinho não se podia esperar qualquer gesto de grandeza numa hora má. Houve oficiais punidos com demissão, a começar pelo governador-geral, e diversos com penas de suspensão com prejuizo das suas carreiras militares. Mas em Portugal sempre foi assim. Dos militares que lutaram contra as invasões francesas, da Guerra Peninsular, a sociedade não os conhece nem lhes sabe os nomes. Mais perto de nós, recordamos de ouvir o envergonhado regresso dos militares da I Guerra. Mas em nenhum momento da nossa história um regime tratou de forma tão indigna os seus militares como o salazarismo tratou os militares da Índia. E este procedimento marcante serviu de suporte e posicionamento a muitos militares generais durante as guerras que se viram obrigados a travar em Angola, Guiné e Moçambique.

É a poeira do tempo, a ignorância forçada a que ficam sujeitas as nossas sociedades.

Por isso não admira que hoje, 61 anos após os acontecimentos da Índia, não haja uma única referência da instituição militar, da sociedade civil nem, claro, dos órgãos de comunicação social. E quando já não existir ninguém que lá tenha vivido essa indignidade, tudo deixará de existir. Surgirão talvez alguns estudos levados a cabo por doutoramentos em História. Com base, claro, nos documentos que existirem, sempre dispersos e muitas vezes incompletos.

O 18 de Dezembro de 1961 faz hoje 61 anos e muito poucos o lembraram. Só os que lá estiveram e ainda estejam vivos ou os familiares dos já desaparecidos.

Um pensamento sobre “O 18 DE DEZEMBRO DE 1961

  1. Sentava-me, por vezes e por largos minutos, na base de um dos encontros do Arco dos Vice Reis, poisando o olhar sobre as águas do Mandovi. Repousava um pouco, na sombra desse monumento tão representativo da nossa história, refugiando-me do calor seco que nos atormentava e nos fazia ansiar pelas chuvas da Monção. Ao longe, entre arrozais e coqueiros, imaginava a distância que me separava da família que deixara em Lisboa. Os meus sonhos, também por lá tinham ficado. Uma distância que se perdia na tristeza do meu olhar, vago e húmido, perdido do ar sorridente dos meus vinte anos que desaparecera bruscamente, à mistura do som do vento de encontro às palmeiras, e o piar soturno das gralhas. Imaginava a história de tantos antepassados, que nunca souberam o que era o regresso. Tive essa sensação ! O receio de nunca mais voltar…!
    Fizemos, todos, parte desse episódio da história de Portugal que já não se lê, nem se recorda, e muito menos se discute ! Tudo esquecido ! Somos assim …!

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