AVESTRUZES EM FARO

Como muitos saberão não sou algarvio, não tenho raizes algarvias , revejo-me na bela Lisboa onde nasci e onde sempre tenho vivido, mas não me posso afastar das realidades familiares do Algarve, que sempre me despertaram o interesse e a curiosidade para conhecer melhor os muitos meandros históricos que enobrecem a região e lhes têm dado uma aura de encanto misterioso. Para lá das delícias das praias algarvias, que são hoje o indicador mais apelativo da região, sempre se estudou a moirama que por lá andou, as conquistas que os nossos primeiros reis realizaram para que o “Reino dos Algarves” fosse exclusivamente português.

Mas não é desta História que quero falar hoje. É, antes, de uma bela recuperação bem mais recente que envolve muitos algarvios ainda vivos.

Numa conferência proferida em Março de 1969, por ocasião das bodas de Diamante do Museu Arqueológico Lapidar do Infante D. Henrique, de Faro, o conferencista José António Pinheiro e Rosa, à data diretor da Biblioteca e dos Museus Municipais de Faro, deu à sua alocução o título de TRÊS PESSOAS E UM MUSEU, repartindo os seus relatos por três figuras famosas na cidade: o Comendador João José da Silva Ferreira Neto; Monsenhor Joaquim Maria Pereira Boto e o Dr. Justino Henrique Cúmano de Bivar Weinholtz. Por razões que decorrem das tais realidades familiares de que já falei no início vou centrar este meu texto apenas no Comendador Ferreira Neto, figura de quem tenho ouvido falar há muitos anos. Para tal, vou-me socorrer do próprio texto original, de que tenho um antigo exemplar de família, em livro, com a data da já mencionada conferência.

Toda a gente da cidade conhece a rua que tem o seu nome, onde fica a casa onde nasceu a 1 de Março de 1856 e em que faleceu a 3 de Maio de 1935. Contavam-se episódios anedóticos sobre a modéstia do seu viver, apesar da grande fortuna que possuía. Misantropismo que terá sido reação à exuberância de vida que o animara na juventude. Filho do Dr. José da Silva Neto, íntegro magistrado, e de D. Gertrudes Ferreira Chaves, herdeira de uma grande fortuna, há no seu nascimento, ocorrido quando a mãe já tinha 49 anos, um sabor romântico. Silva Neto fora um dos muitos pretendentes de D. Gertrudes, quando nova, recusado mas não repelido. Muitos anos depois , removido o óbice que se opunha ao casamento e conservando-se ambos solteiros, foi resolvido o enlace de que proveio o nosso homenageado. Um filho tardio que ficou só com a mãe, por morte prematura do pai, e senhor de largos meios financeiros.

(Como apontamento deste meu texto, devo referir que o “sabor romântico” de que fala o conferencista terá a ver com viagem de núpcias do casal pela Europa, Alemanha e Áustria principalmente, que terá durado um ano e donde terão regressado com um bébé muito loiro e de olhos azuis que sempre pareceu diverso dos aspetos genéticos dos pais. Para uma mãe de 49 anos… todos se convenceram que terá sido uma criança adotada, com origens austríacas. Talvez não tenha sido assim, mas que o sabor romântico aludido pelo autor nunca foi contestado, é verdade. Picaresco mas engraçado. Voltemos ao texto do conferencista).

Apesar da vida folgada que a fortuna lhe permitia não deixou de tirar o curso de agronomia tornando-se um conceituado engenheiro agrónomo. Como grande espírito aberto ao progresso viajava muito pela Europa, principalmente focado em Paris, donde terá regressado num belo iate de recreio, chamado “Dália”, com muitas companheiras francesas a bordo. Foi das primeiras pessoas que apareceu em Faro com um velocípede, antepassado da bicicleta, e quem possuiu o primeiro automóvel que veio para o Algarve. Na sequência destas novidades o Comendador arranjou também um carro puxado por avestruzes que circulava com frequência entre Faro e a sua enorme propriedade da Quinta da Penha. Mas, segundo todos os que o conheceram diretamente, ele foi, essencialmente, um talentoso político. Num período de 50 anos o nome de Ferreira Neto aparece ligado à política de toda a vida algarvia. Era amigo pessoal de Hintze Ribeiro, ministro e várias vezes presidente do Conselho e chefe do Partido Regenerador em que Ferreira Neto militava.

Ferreira Neto desempenhou cargos públicos da mais alta importância. Foi ao Parlamento em várias legislaturas, como deputado pelo Algarve. Foi como Governador Civil do Distrito que se prolongou a linha férrea de Faro a Olhão, inaugurada em 1904. Quando, mais tarde, foi Presidente da Câmara evidenciou um dinamismo exemplar. Logo após a sua posse tem lugar o incidente com o “ultimato inglês “. Por tal facto propôs medidas concretas: dar à Rua da Cadeia, a principal da cidade, o nome de Serpa Pinto; transferir os seguros dos prédios da Câmara, da Companhia inglesa Norwich para outras que não fossem inglesas e proibiu a Câmara de adquirir qualquer material de origem inglesa. A ele se ficou a dever a construção de grande parte das estradas do Concelho que, nesse tempo, englobava também a freguesia de S. Brás de Alportel. Foram os casos das estradas de: circunvalação da cidade, a de S.Luís pelos sítios da Atalaia, Bom João, Campo da Trindade, a da Sambada a S. Romão, a de S. Luís à ponte das Lavadeiras. A fundação do Museu que estamos a comemorar foi uma realização de notável rapidez: resolvida em 22 de Fevereiro já foi possível inaugurar o Museu em 4 de Março.

Um apontamento à visita régia de 1897. Ferreira Neto sabe que D. Carlos e D. Amélia desejam visitar o Algarve e logo se prontifica a ir a Lisboa, à sua custa, fazer-lhes um convite oficial. Em Cascais os Reis mostram-se encantados com o convite e virão a Faro no dia 9 de Outubro. A visita foi um êxito e durante o banquete oficial Ferreira Neto formula ao Rei as aspirações da cidade. E dessa iniciativa veio a conseguir a conclusão do caminho de ferro de Faro a Vila Real de Santo António e de Messines a Portimão e Lagos. A seguir a esta visita Ferreira Neto é agraciado com a Comenda da Ordem da Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Quiseram também fazê-lo Visconde – Visconde da Penha, nome de uma das suas melhores propriedades, mas a sua modéstia recusou.

Depois do advento da República afasta-se de toda a atividade política mas não deixou de se interessar pelas grandes causas algarvias. Foi com ele que se conseguiu criar a Companhia de Pescarias do Algarve com enorme lançamento de armações de atum que ainda perduram.

Por disposição testamentária de 1933 legou ao Hospital de Faro a importante quantia de 40 mil escudos e mandou que o seu corpo fosse depositado na igreja do Carmo, que muito beneficiara em vida, e de cuja Ordem era, na altura, o mais antigo irmão.

Aqui vos deixo um pequeno testemunho do que foi a vida de um notável cidadão algarvio que deu à sua terra um grande desenvolvimento. Alguns dos seus descendentes, que não o conheceram em vida, relatam estes feitos com alguma emoção e manifestam o seu apreço pela personalidade e pelas obras do seu antepassado. A esses descendentes dedico, em especial, este texto retirado, como disse no início, de uma publicação de 1969, escrita por quem não podia inventar falsas interpretações. Tenho esse pequeno livro em meu poder.

Esta iniciativa pode também servir de desafio a muita gente que, por todo o país, se lembra de notáveis cidadãos das suas terras ou regiões e que, por falta de relatos históricos, poderão resvalar para um ingrato e imerecido esquecimento.

Parabéns aos farenses que ainda se lembram do Comendador Ferreira Neto.

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