ABERTO TODOS OS DIAS

Os dias que temos vivido recentemente suscitam-me, talvez infelizmente, sorrisos maliciosos e expressões de descrença. Faça o que se fizer, a gente do mundo que ouvimos e lemos diz cronicamente mal. Vivemos numa terra onde tudo parece andar de pernas para o ar, sem remédio, sem saída. São raras as comparações com o que se passa noutros locais e países, para vermos se o nosso mal é endémico ou acidental. Como em toda a parte, as coisas não correm sempre bem. Há disparates ou deslizes de comportamento que são matéria para os “avençados” do comentário se desfazerem em opiniões delirantes revelando uma doentia escassez de conhecimentos.

É assim. E por tudo isto me lembrei recorrer aos versos do médico/poeta João Luís Barreto Guimarães, vencedor do Prémio Pessoa de 2022. Já aqui o citei em textos anteriores por achar que o realismo dos seus poemas vai muito ao encontro das nossas vidas diárias. Do seu livro “Aberto Todos os Dias” retirei o poema com o mesmo nome, tal e qual ele o escreveu:

O mundo
aberto lá fora. Difícil cansar-me dele. O céu
a entrar pela janela. O músculo do homem comum.
As laranjeiras de Córdova. Brindar com
água da
chuva. Os peixes do Nilo urinando na
mesma água em que nadam. O vinho que fez
um estágio nas caves do Douro
e passou. A lua a quem eu uivo a cada noite
(em segredo). Um relâmpago à janela:
electrocardiograma
de Deus. A orgia
dos seixos na espuma. Um ministro que mentiu.
Cerejas no mês de Maio. Sardinhas
no mês
de Junho. Os pés que saem da areia ornados
com missangas de prata. Os enfermeiros
exaustos que saem de
mais um turno. A Vitória de Samotrácia parecendo atrasada
perguntando “quelle heure est-il?” à estátua da
Vénus de Milo. Jesus Cristo
num
decote. A maldade de Putin. A carne
de um dióspiro. E o
ministro que não se demite. Nem um
só dia desperdiçado. Estar à disposição do mundo. Como
quem ergue a verdade com a luva
da linguagem.


Agora digam lá se tudo isto não tem a ver com as bizantinices que nos rodeiam.

Um pensamento sobre “ABERTO TODOS OS DIAS

  1. Um mundo como nunca se viu. O cansaço dos dias iguais, na vã esperança que tudo mude sem alterar nada, para variar um pouco a paisagem. Os spots televisivos sempre iguais aos dos dias anteriores. Im westen nichts Neues…!

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