Seria injusto deixar passa este dia sem uma referência ao que esta arte significa e à forma como tem expressado e continuará a expressar os mais variados sentimentos humanos: a dor, a paixão, a angústia, o deslumbramento, as aspirações, o real e o irreal, tudo num caldeamento mágico de sentimentos que nos interrogam e, muitas vezes, nos sublimam.
Quantas vezes já lemos um poema mais do que uma vez para o entendermos e o interpretarmos nas suas múltiplas facetas? A poesia é uma forma de escrita que muito tem evoluído ao longo dos tempos, mais , talvez, do que os textos clássicos. Nem todos apreciarão a poesia mas raramente se lhe é indiferente quando ela quase explode debaixo dos nossos olhos. Acho que é oportuno falar, hoje, um pouco de poesia, sem pretensões e sem preocupação referencial de qualquer espécie. Respiguei três poemas de autores diversos e diferentes nas suas épocas e nos seus estilos. Gosto dos três e tenho pena de não incluir os outros milhares de que também gosto mas que, espero, estarão hoje a ser lidos e divulgados pelos muitos meios que para tal se disponibilizaram.
Bom dia da Poesia. Aqui ficam os três poemas que selecionei.
CONTA E TEMPO
Soneto de Frei António Chagas – século XVII
Deus pede estrita conta do meu tempo.
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta,
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta.
Hoje, quero fazer conta, e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta!
Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo…
PORQUE
Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen de 1958, fazendo parte da sua obra “Mar Novo”
Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo e tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam e tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
COMO DIRIA O CEZARINY
Poema de autoria de Nicolau Santos, 2005
Falta-nos aqui uma grande Razão
Como dizia o Cezariny
Uma verdade para qualquer estação
Falta-nos um motivo, um anseio
Um desejo fortíssimo, um desígnio, uma visão.
Falta-nos um punhal brilhantíssimo
Para liquidar esta vida de conformismo
De rotina sem ambição.
E falta-nos uma espingarda
Para apontar ao manto da noite
E rasgar estrelas na escuridão.
Falta-nos um visionário
Que traga o futuro nos olhos
E a cara pintada de carvão.
E falta-nos um gato persa
Que seja tão sábio como os sábios
Quando sustém a respiração
Falta-nos um garfo de aço holandês
Com embutidos de mármore
Que diga poemas em alemão
Falta-nos um Kant, um Locke, um Aristóteles,
Um Sócrates, um Newton, um Platão.
Falta-nos acabar com os burocratas
Fundar uma não-igreja
E pôr no altar a imaginação.
E falta-nos um pianista que toque
Bach, Mozart, Chopin
De forma perfeita com uma só mão.
Falta-nos brilho, noite, lentejoulas
E uma inesperada mulher-palhaço
Que nos faça rir até à exaustão.
E falta-nos um jardim humanológico
Repleto de corruptos e assassinos
Comidos dia a dia por um leão.
Falta-nos um relógio que não nos dê ordens
Um barco que seja um jardim
E um zeppelim que só ande no chão.
Falta-nos dedos para tocar o invisível
Todas as palavras ainda por dizer
E uma imensa coragem no coração.
E falta-nos ter o peito muito aberto
A tudo o que seja talento, novidade, diferença, inovação.
Falta-nos fazer o exercício diário
De andar de bicicleta num arame esticado
Entre dois prédios em construção.
Falta-nos sobreviver sem telemóveis,
Automóveis, sacos de plástico, Ipods,
Twitter e, sobretudo, televisão.
Falta-nos fazer filhos aos magotes
Mas não para garantir a segurança social
Nem os educadores do Ministério da Educação.
Falta-nos esquecer todas as fronteiras
Instalar alarmes, os barcos da marinha
Sossegar o nosso medo da imigração.
Falta-nos filosofar socraticamente
Sobre negros, amarelos, mulatos
E os benefícios da misceginação.
Falta-nos uma bússola, um sextante,
Um astrolábio, a rosa dos ventos
Para nos ajudar na navegação.
Falta-nos uma mesa de pé de galo
Que se levante no ar e voe
Quando o debate se transforma em discussão.
Falta-nos discursos de jazz no Parlamento
De Coltrane, Milles Davis, Thelonius Monk,
Em vez de governo e oposição.
E falta-nos fazer algo de verdadeiramente original:
Eleger um sonho para nos governar
Em vez de uma desilusão.
Até lá, como diria o Cezariny,
Falta por aqui uma grande Razão.
Boa leitura. Até à próxima!
Obrigado pela participação e parabéns pelo belo texto.
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Falta-nos um pouco de tudo. Falta saber, que temos de tudo, um pouco. Falta-nos o brilho dos olhos, que não sejam o das lágrimas. Falta-nos a vontade, que esmorece, quando tudo se esquece. Falta-nos a vida, do saber viver. Falta-nos a alegria, quando o futuro desaparece…!
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