Ofereceram-me um livro que li com imenso prazer. Talvez dos que mais gostei nos últimos tempos. Chama-se “Disse-me um Adivinho”, da autoria do jornalista-escritor italiano Tiziano Terzani, entretanto falecido. Do prefácio desse livro, escrito por Carlos Vaz Marques, extraio a seguinte parte:
Tiziano Terzani e Ryszard Kapuscinski nunca se encontraram pessoalmente. O desencontro físico de dois dos maiores repórteres do século XX não impediu Kapuscinski de escrever, pouco depois da morte de Terzani, que tinha “belas memórias” a respeito dele. É talvez o mais profundo tributo que se pode prestar a um autor. Dizer dele que temos “belas memórias” dos momentos em que o acompanhámos, lendo-o. Daqueles instantes em que ele entrou na nossa vida para não voltar a sair.
“Disse-me um Adivinho” foi o livro com que Tiziano Terzani se reinventou. Depois de décadas a cobrir inúmeras guerras, tragédias e desgraças a Oriente, o escritor tomou lugar do repórter. Terzani, voluntariamente impedido de viajar de avião durante um ano, restitui-nos um mundo infinitamente mais complexo do que o de uma modernidade em que nos deslocamos a grande velocidade, pensamos com enorme rapidez e morremos velozmente. Numa viagem como a dele, percorrendo o Extremo Oriente por terra durante um ano, quem chega nunca é quem partiu.
Já se percebeu que a maior parte deste texto é composto de citações. Faço-as porque Terzani nos seus percursos e nos seus isolamentos passou, claro, por algumas depressões. E, sobre isso, divaga e explica:
A depressão transforma-se num direito, quando olhamos à nossa volta e não vemos nada nem ninguém que nos inspire, quando o mundo parece resvalar para um pântano de inépcia e de tacanhez materialista. Já não há ideais, já não há fés, já não há sonhos. Já não há nada de grandioso em que acreditar; nem mesmo que nos sirva de modelo.
Raramente a humanidade se encontrou, como hoje, privada de figuras inspiradoras, de faróis orientadores. Onde está um grande filósofo, um grande pintor, um grande escritor, um grande escultor? Os poucos que nos vêm à mente são sobretudo fenómenos de publicidade e de marketing. A política, mais do que qualquer outro sector da sociedade, está entregue aos medíocres, graças precisamente à democracia, que hoje se tornou uma aberração da ideia original, quando o que estava em causa era votar se se devia declarar guerra a Esparta ou não e depois… ir de facto, ir pessoalmente, talvez para morrer. Hoje, para a maioria, democracia significa ir, de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos, pôr uma cruz num bocado de papel e eleger alguém que, justamente por ter de agradar a muitos, tem necessariamente de ser mediano, medíocre e banal como são sempre todas as maiorias. Se alguma vez existisse uma pessoa excepcional, alguém com ideias fora do comum, com um projecto que não fosse apenas o de convencer toda a gente com promessas de felicidade, essa pessoa nunca seria eleita.
E a arte, esse atalho para a percepção da grandeza? Também ela já não ajuda as pessoas a compreender a essência das coisas. A música agora parece feita para chegar aos ouvidos, não à alma; a pintura, muitas vezes, é uma ofensa para os olhos; a literatura, também, é cada vez mais dominada pelas leis do mercado. E quem ainda lê poesia? O seu valor exaltante foi olvidado! No entanto, a poesia pode acender no peito um fogo tão forte como o do amor.
Cada vez que olhamos à nossa volta apercebemo-nos de que o nosso modo de viver é cada vez mais insensato. Não é de admirar que a depressão seja hoje um mal tão comum. É quase reconfortante. E sinal de que no íntimo das pessoas ainda resta o desejo de serem mais humanas.
Por tudo isto que transcrevi e por aquilo a que todos os dias assistimos, resta-nos manter a esperança na luta, física ou moral, para que os obscenos líderes eleitos que pululam por este mundo sejam afastados e arredados dos tronos em que se julgam alcandorados. Não pode ser prometido matar, eliminar, afastar ou repelir. Não pode ser prometido o confronto no lugar da paz, não pode ser negado o princípio da igualdade, da equidade, da solidariedade. Não se pode negar a vida, mas é preciso que quem escolhe, quem vota, pense o mundo para além da rua em que vive. Porque se o mundo melhorar a sua rua também ficará melhor.
E que bom seria que os poemas vencessem os populismos e as não-ideias. Difícil, não é?
Se quiserem ler o livro de Tiziano Terzani ficarão ainda, segundo julgo, com muito mais argumentos. O mundo está em mudança, claro, mas todas as mudanças se podem fazer com respeito e elevação. Sem traições, sem corrupções, sem humilhações. Em paz, com dignidade e compreensão pelo próximo. Sempre com justiça independente, não conformada a interesses de clientelas. Vamos melhorar o mundo!
Maravilhosas citações, que nos deixam pensativos, quase de rastos…! Li e reli. Mastiguei todas aquelas palavras tão reais, tão verdadeiras com o que se passa neste mundo que se nos atravessa pela frente, sem pudor, descaradamente, completamente vazio de nobreza de atitudes…! Um mundo demasiado veloz, incomportável para compreensão humana…!
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