Do papel para o celuloide

Já todos nos confrontámos com a inevitável comparação entre um filme que vimos e a obra literária que lhe deu origem. E provavelmente isso ocorreu-nos na mais frequente das duas possíveis cronologias: lemos primeiro o livro e vimos depois o filme.

Não querendo generalizar, tenho para mim que dificilmente consigo retirar de um filme o mesmo prazer lúdico que me terá suscitado a prévia leitura da obra que o antecedeu. Confesso que me sinto, regra geral, “enganado” pelo filme. Talvez este sentimento não seja consensual mas é o meu. E acho-o perfeitamente explicável.

Um romance é uma construção artística que deve muito à imaginação do leitor. Por muito explícito que o autor seja na descrição de personagens e situações, cada um de nós constrói depois imagens mentais personalizadas dos mesmos. Qualquer filme uniformiza inevitavelmente a interpretação do livro de forma algo violenta, passe a hipérbole, destruindo cada uma dessas imagens individuais que laboriosamente criámos ao longo da leitura. O casting força-nos personagens que não identificamos. Os locais de filmagem escolhidos ou contruídos em estúdio são-nos estranhos ou irreconhecíveis. As situações e diálogos são adaptados e reduzidos para caberem num tempo que não é o da leitura. Esta dissonância cognitiva será porventura uma das razões para o desapontamento que sinto quando vejo um filme que já “li”.

Devorei na minha juventude os livros de Agatha Christie, com uma avidez suplementar quando envolviam a personagem de Hercule Poirot. As suas little grey cells (pronunciar com sotaque francês) proporcionaram-me momentos inesquecíveis de prazer. Mas que desilusão senti quando vi o “Um Crime no Expresso do Oriente” interpretado por Albert Finney (1974), já para nem falar da mais recente versão com Keneth Branagh (2017). Ou quando vi o “Morte no Nilo” com Peter Ustinov (1978). Os três, diga-se, atores de mão cheia, extraordinários artistas. Mas nenhum deles sequer se aproximando da imagem mental que construí, ao longo de anos, do pequeno detetive belga. Acabei mais tarde por me reconciliar com as várias interpretações de David Suchet porque, por coincidência, felicidade ou competência, eram fotocópias da imagem que eu mesmo criei. Aquela cabeça em forma de ovo e o bigode irrepreensivelmente alinhado não enganavam.

Mas há uma outra razão para a desilusão: poucos filmes conseguem transpor para o ecrã reflexões ou discussões temáticas com a mesma profundidade que os livros nos oferecem. Desde logo, por razões de economia temporal. Mas também, naturalmente, pela dificuldade de traduzir conceitos abstratos em imagem.

Nunca me esqueci da frieza com que recebi o filme “A Insustentável Leveza do Ser” (1988), depois da grata experiência de ler o romance, um marco para a minha geração. Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin compuseram inolvidáveis Tomas, Tereza e Sabina. Mas o livro era tão mais do que apenas a história de um triângulo amoroso impossível ou da primavera de Praga e sequente repressão soviética… A principal reflexão da obra (daí o título) é a seguinte: quão leve seria a nossa vida se a pudéssemos reviver, sem o peso de saber que todas as nossas ações têm consequências definitivas e irreversíveis? A discussão filosófica que a leitura suscita é profunda e exigente, intersetando-se com a ideia da reincarnação de Sócrates e Platão ou com o conceito do eterno retorno de Nietzsche. O filme, tanto quanto me lembro, mal aflorou esta faceta do livro. E por isso me soube a pouco.

Há, como em tudo, exceções a esta minha regra geral. E elas ocorrem normalmente em duas situações: quando a preocupação do realizador é criar, de facto, um objeto artístico inteiramente novo; ou quando o livro, em comparação com o filme, é de muito menor qualidade.

Um bom exemplo do primeiro caso é o “Anna Karenina” (2012), realizado por Joe Wright. Ao contrário dos filmes homólogos de 1935 (com Greta Garbo) e de 1997 (com Sophie Marceau), eminentemente narrativos, o primeiro é todo ele uma alegoria teatral onde predomina o excesso: as cores berrantes, os belíssimos adereços (que lhe renderam um Oscar), os cenários improvavelmente irrepreensíveis, a representação exacerbada das paixões. O filme não é consensual mas, goste-se ou não dele (e eu gostei), não se está perante a tentativa de transpor um livro para o ecrã mas sim de criar um objeto original que usa o romance como base e ponto de partida. Usufrui-se, assim, de algo inédito, em certo sentido.

Dois bons exemplos da segunda situação são os filmes “Psico”, de Hitchcock, ou “Jaws” (“Tubarão”), de Spielberg. Os livros que deram origem às obras primas cinematográficas são relativamente menores e seriam quase desconhecidos, não fosse a sua transposição para o cinema. Aliás, neste tipo de casos, é raro ter-se lido o livro antes de ver o filme, o que também reduz a probabilidade da desilusão. É mais comum ir-se procurar o papel depois do celuloide, o que, confesso, nunca faço.

Não me lembro de alguma vez um filme me ter despertado a curiosidade para ler o livro. Reconheço que deverá ser uma idiossincrasia minha, muita gente o faz. Fico sempre com a sensação de que não vale o esforço, já sei “como acaba”. E assim, culpo o meu gosto pelo cinema pela privação a que me sujeito relativamente a alguns clássicos incontornáveis da literatura. Isso e alguma preguiça, tenho que admitir. Como disse Pessoa no seu poema “Liberdade”, que prazer “ter um livro para ler e não o fazer”.

4 pensamentos sobre “Do papel para o celuloide

  1. Inteiramente de acordo : cinema e literatura são duas formas diferentes de expressão artística. Podem ter o mesmo argumento mas devem ser apreciadas de maneira diferente. Também raramente leio um livro que tenha servido de base para um filme.
    Parabéns pelo texto

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  2. Gostei muito de ler este texto. Desejaria até, que a leitura não se ficasse só por uma página. O cinema, é ainda uma das artes que mais me apaixona. E muito, mesmo muito, há ainda para se dizer, sobre tudo o que já vimos, desde os fabulosos preto e branco, até à presente data. De facto, uma parte crítica da cinematografia, está na forma como se consegue fazer a transposição do ambiente em que a leitura nos coloca, e o que habitualmente vemos na tela, sem nos estimular a imaginação…!

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